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Vol. 88. Núm. 3.
Páginas 439-444 (Maio - Junho 2022)
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Vol. 88. Núm. 3.
Páginas 439-444 (Maio - Junho 2022)
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Disfunção de olfato na Covid‐19: marcador de bom prognóstico?
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Cindy Vitalino Mendonça
Autor para correspondência
cindymendonca@hotmail.com

Autor para correspondência.
, José Arruda Mendes Neto, Fabio Akira Suzuki, Marlon Steffens Orth, Hugo Machado Neto, Sérgio Roberto Nacif
Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de Oliveira, Departamento de Otorrinolaringologia, São Paulo, SP, Brasil
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Resumo
Introdução

Em maio de 2020, a Organização Mundial da Saúde reconheceu a disfunção do olfato como um sintoma da C‐19. A presença de hiposmia/anosmia pode ser um marcador de bom prognóstico na Covid‐19.

Objetivos

Relacionar a presença do transtorno do olfato à gravidade do quadro clínico nos pacientes com Covid‐19.

Método

: Foram recrutados indivíduos com síndrome gripal causada pelo SARS‐CoV‐2, diagnosticados de março a junho de 2020. Eles foram divididos em três grupos: síndrome gripal leve; síndrome gripal grave (internados em enfermarias) e doença crítica (internados em UTI). Os doentes internados foram entrevistados por ligação telefônica após alta hospitalar e também tiveram seus prontuários avaliados para registro de exames complementares; os ambulatoriais responderam a um questionário eletrônico com somente informações clínicas.

Resultados

Participaram do estudo 261 pacientes: 23,75% com síndrome gripal leve, 57,85% com síndrome gripal grave e 18,40% com doença crítica. Ocorreu alteração do olfato em 66,28% doentes com Covid‐19. Dos indivíduos, 56,58% apresentaram duração da alteração do olfato entre 9 dias e 2 meses. Houve significativamente maior proporção de indivíduos com disfunção olfatória no grupo com síndrome gripal leve do que nos graves (leves × graves – p < 0,001; odds ratio=4,63; 95% IC [1,87–10,86]). Essa relação também se manteve entre os doentes leves e críticos (leves × críticos – p < 0,001; odds ratio=9,28; 95% IC [3,52–25,53]).

Conclusão

A disfunção do olfato foi significantemente mais prevalente nos doentes com síndrome gripal leve na Covid‐19. Pode ser um preditor de bom prognóstico dessa infecção. Novos estudos populacionais devem ser feitos para corroborar esses achados.

Palavras‐chave:
Distúrbios do olfato
Infecções por coronavírus
Disgeusia
Olfato
Texto Completo
Introdução

A propagação contínua da epidemia provocada pelo novo coronavírus (SARS‐CoV‐2) causa enorme impacto nas especialidades médicas e promove busca permanente em identificar e entender possíveis novos sinais e sintomas da doença do novo coronavírus 2019 (Covid‐19). O quadro clínico mais habitual é caracterizado por febre, tosse, dispneia, mialgia e sintomas respiratórios superiores.1,2

Em maio de 2020, dois meses após declarar a Covid‐19 pandemia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu como sintomatologia dessa doença alterações na percepção do olfato e do paladar.3 Registros de tais disfunções foram achados raros nos estudos chineses, constatados em aproximadamente 5% dos casos.4 Em uma pesquisa europeia multicêntrica, 85,6% dos pacientes avaliados reportaram alterações no olfato e 11,8% apresentaram anosmia antes dos outros sintomas.5 No estudo da Academia Americana, 26,6% dos indivíduos a relataram como único sintoma inicial.6 A literatura brasileira ainda é escassa sobre o assunto. Jofilly et al. relataram que a perda súbita de olfato apresentou alto valor preditivo positivo (88%) para o diagnóstico de Covid‐19 durante a epidemia no Brasil.7

Devido à importância clínica dessa nova doença e com o propósito de compreender as alterações do olfato relacionadas a essa síndrome respiratória, desenhou‐se esta pesquisa em um centro terciário na cidade de São Paulo com pacientes diagnosticados com a Covid‐19.

O objetivo deste estudo é avaliar a associação entre o distúrbio de olfato nos pacientes que apresentaram Covid‐19 e a gravidade da síndrome gripal (síndrome gripal leve, síndrome gripal grave, doença crítica).

Método

O estudo foi feito em um hospital terciário e aprovado pelo comitê de ética local CAAE 31512220.5.0000.5463. Todos os participantes assinaram termo eletrônico de consentimento livre e esclarecido oferecido pelos pesquisadores. As informações foram coletadas entre março e junho de 2020.

Foram usados como critérios de inclusão pacientes maiores de 18 anos com diagnóstico confirmado por Reverse‐Transcriptase Polymerase Chain Reaction (RT–PCR) do swab de nasofaringe e orofaringe ou por sorologia.1,2 Foram excluídos aqueles com alterações do olfato ou paladar prévios à infecção de Covid‐19; pacientes internados no momento da coleta de dados para o estudo; pacientes traqueostomizados; indivíduos com confusão mental após o período de internação prolongada e aqueles que se recusaram a assinar o termo de consentimento.

Os indivíduos foram selecionados por amostragem não probabilística por julgamento. Foram formados três grupos de pacientes para este estudo, de acordo com a gravidade da síndrome gripal provocada pela SARS‐CoV‐2: síndrome gripal grave (tratamento hospitalar sem necessidade de suporte intensivo), doença crítica (tratamento hospitalar com necessidade de suporte intensivo) e síndrome gripal leve (tratamento ambulatorial).

Os pacientes internados (com e sem alteração do olfato) foram entrevistados por ligação telefônica feita por equipe de médicos após a alta hospitalar, período em que esses doentes não apresentavam confusão mental e estavam aptos a responder ao questionário elaborado pelos pesquisadores. O questionário incluiu os dados de identificação (idade e gênero) e as seguintes variáveis clínicas referentes ao período de infecção pelo SARS‐CoV‐2: presença de sintomas nasais (obstrução nasal e/ou secreção nasal), sintomas neurológicos (cefaleia e/ou tontura), antecedentes de DM, hábitos tabágicos, alteração do olfato e do paladar. Em caso de resposta afirmativa para hiposmia/anosmia, indagou‐se também sobre a duração desse quadro (< 9 dias, ≥ 9 dias e < 2 meses, ≥ 2 meses). Não houve quantificação por meio da escala visual analógica de qualquer dos sintomas. Os parâmetros laboratoriais (proteína C reativa e linfócitos) foram obtidos a partir das informações registradas no prontuário eletrônico dos indivíduos no primeiro dia de internação hospitalar.

Os doentes com síndrome gripal leve (com e sem alteração do olfato) foram formados por profissionais da saúde deste hospital terciário. Eles foram contatados e receberam um questionário eletrônico semelhante ao aplicado nos pacientes internados, porém excluídos os parâmetros laboratoriais. Não houve coleta de exames nesses pacientes.

O cálculo amostral deste estudo transversal foi baseado no trabalho de Mein ST et al. (2020),8 delimitado a partir do software Epi Info, apresentou nível de confiança de 95%, poder de 80% e margem de erro de 5%. Com os métodos Kelsey, Fleiss e Fleiss com correção de continuidade, o cálculo do número total de indivíduos foi de 210,212 e 234, respectivamente.

Análise estatística

As variáveis consideradas para este estudo foram: gênero do paciente, idade, disgeusia, diabetes mellitus (DM), sintoma nasal, sintoma neurológico, tabagismo, quadro clínico (síndrome gripal leve, síndrome gripal grave, doença crítica), nível sanguíneo de linfócitos e nível sérico de PCR.

Foram usados os programas SPSS V16, Excel office 2010 e EPI INFO 7.2.2.6. Para este estudo foi usado um nível de significância estatística menor do que 0,05 (5%).

As variáveis categóricas foram descritas segundo frequência e as variáveis numéricas segundo média e desvio‐padrão (DP). Foram usados os testes qui‐quadrado bicaudal ou o teste exato de Fisher bicaudal para avaliar a diferença entre as frequências das variáveis categóricas.

Para estudar a diferença das médias entre as variáveis numéricas foram usados testes paramétricos e não paramétricos, de acordo com o resultado de teste de Bartlett. Na análise dessas variáveis, quando o teste de Bartlett resultou em um valor de p < 0,05, o teste usado foi o Mann‐Whitney/Wilcoxon (teste de Kruskal wallis). Por outro lado, quando o valor‐p neste teste foi maior do que 0,05, oo que sugeriu variância homogênea, foi usado o teste Anova (paramétrico).

Resultados

A amostra foi formada por 261 indivíduos. Sessenta e dois doentes apresentaram (23,75%) síndrome gripal leve, 151 (57,85%) síndrome gripal grave e 48 (18,40%) doença crítica.

Os pacientes com síndrome gripal leve foram estatisticamente mais jovens (p < 0,001). Apresentaram significativamente mais sintomas nasais e neurológicos, quando comparados aos doentes críticos (p < 0,001) e graves (p < 0,001) (tabela 1).

Tabela 1.

Síndromes clínicas na Covid‐19

  Síndromes clínicas na COVID‐19p‐valor
  S. Gripal Leve (SGL)  S. Gripal Grave (SGG)  Doença Crítica (DC)  SGL ×SGG  SGL ×DC  SGG ×DC 
  (n = 62)  (n = 151)  (n = 48)       
Idadea  36,67 ± 10,25  63,18 ± 12,65  59,89 ± 12,89  < 0,001c,f  < 0,001c,f  0,12c 
Gênero (M/F)b  41,94%/58,06%  54,97%/45,03%  37,50%/62,50%  0,11d  0,78d  0,06d 
Sintoma nasalb  56,45%  19,87%  16,67%  < 0,001d,f  < 0,001d,f  0,67d 
Sintoma neurológicob  70,97%  25,17%  29,17%  < 0,001d,f  < 0,001d,f  0,71d 
DMb  4,84%  36,42%  45,83%  < 0,001d,f  < 0,001d,f  0,31d 
Tabagismob  6,45%  4,64%  0,00%  0,73e  0,13e  0,19e 
Linfócito totala  S/D  1177,95 ± 420,83  1251,16 ± 517,39  S/D  S/D  0,37c 
PCRa  S/D  9,34 ± 8,02  14,69 ± 9,26  S/D  S/D  < 0,001c,e 

SGL, síndrome gripal leve; SGG, síndrome gripal grave; DC, doença crítica; S/D, não foram coletados dados.

a Valores em médias e desvio‐padrão.

b Valores em porcentagens.

c Teste Anova.

d Teste X2 bicaudal corrigido.

e Teste exato de Fisher bicaudal.

fp < 0,05.

A prevalência de DM foi estatisticamente maior entre os pacientes internados (p < 0,001) (tabela 1).

Os níveis de proteína C‐reativa (PCR) foram significantemente mais elevados nos doentes críticos do que nos pacientes com síndrome gripal grave (p < 0,001) (tabela 1).

Ocorreu alteração do olfato em 66,28% doentes com Covid‐19. A duração da disfunção olfatória foi variável nos entrevistados. A maioria dos pacientes apresentou hiposmia/anosmia durante um período superior a nove dias e inferior a dois meses (56,68%). Apresentaram disfunção olfatória com duração menor do que 9 dias 51 pacientes (32,48%) e 17 (10,82%) apresentaram transtorno do olfato com duração superior a 2 meses. É necessário ressaltar que 104 pacientes que apresentaram disfunção de olfato não souberam informar com precisão qual o tempo de duração da hiposmia/anosmia.

Disfunção do olfato e gravidade do quadro clínico

Houve alteração do olfato em 88,70% dos pacientes com quadro leve; 62,91% daqueles internados em enfermaria e 45,83% dos hospitalizados em unidade de terapia intensiva. Houve significativamente mais pacientes com disfunção olfatória nos doentes com síndrome gripal leve do que nos classificados como síndrome gripal grave (p < 0,001; odds ratio=4,63; 95% IC [1,87–10,86]). Além disso, foram observados significativamente mais pacientes com alteração de olfato nos doentes com síndrome gripal grave do que nos críticos (p=0,05; odds ratio=1,98; 95% IC [1,02–3,82]). Por fim, essa relação também se manteve quando se compararam os indivíduos leves x críticos (p < 0,00); odds ratio=9,28; 95% IC [3,52–25,53]) (fig. 1).

Figura 1.

Distribuição da alteração de olfato estratificado pelo quadro clínico da Covid‐19.

(0,07MB).
Disfunção do olfato e disgeusia

Os pacientes com hiposmia/anosmia apresentaram significativamente mais disgeusia do que os pacientes sem esse transtorno (p < 0,001; odds ratio=89,13; 95% IC [34,88–227,70]).

Disfunção do olfato e sintomas nasais

Quando perguntados sobre a presença de sintomas nasais, 80,82% dos pacientes com disfunção do olfato relataram obstrução e/ou secreção nasal. Por outro lado, somente 19,18% dos doentes sem alteração do olfato descreveram rinorreia e/ou congestão nasal (p < 0,001; odds ratio=2,73; 95% IC [1,42–5,25]) (fig. 2).

Figura 2.

Disfunção do olfato e sintomas nasais. Q, Teste X2 bicaudal.

(0,06MB).
Disfunção do olfato e sintomas neurológicos

Houve uma relação estatisticamente significante entre a presença de transtornos do olfato e sintomas neurológicos, como tontura e cefaleia (p=0,03; odds ratio=1,90; 95% IC [1,08–3,32]) (fig. 3).

Figura 3.

Disfunção do olfato e sintomas neurológicos. Q, Teste X2 bicaudal.

(0,07MB).
Discussão

A disfunção do olfato é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos sintomas causados pelo SARS‐CoV‐2.3 Apesar de amplamente observado na prática clínica e divulgado em trabalhos estrangeiros,9–11 trata‐se de um transtorno relacionado à Covid‐19 ainda pouco relatado na literatura brasileira.7,12,13 No presente estudo, observou‐se uma relação inversa entre a presença de hiposmia/anosmia e a gravidade do quadro clínico do paciente.

Os participantes classificados como síndrome gripal leve foram estatisticamente mais jovens quando comparados aos pacientes que necessitaram de internação hospitalar. Resultado semelhante ao encontrado em outros estudos, em que os pacientes mais velhos tenderam a ter um quadro clínico mais severo da Covid‐19, provavelmente pelo maior número de doenças crônicas e diminuição da competência imunológica.1,2

Os pacientes do grupo síndrome gripal leve também apresentaram significantemente mais sintomas nasais e sintomas neurológicos. Em um estudo feito na Coreia do Sul com 213 participantes ambulatoriais, foram identificados entre os sintomas mais comuns tosse, hiposmia, disgeusia, obstrução nasal, cefaleia e mialgia. Em contraste, os doentes internados relataram mais febre, tosse e dispneia.14

A diabetes mellitus foi uma comorbidade significantemente mais frequente em pacientes que internaram. A presença de DM é considerada como fator de risco para desenvolver uma forma clínica grave da Covid‐19.15

Doentes críticos apresentaram estatisticamente níveis mais elevados de PCR. A dosagem de PCR é considerada como marcador inflamatório e pode ser relacionada a quadros mais graves.16 Valores mais altos de PCR podem ser associados a uma maior necessidade de cuidado em unidade de terapia intensiva.17

Neste estudo, 173 pacientes (66,28%) apresentaram alguma disfunção do olfato durante a infecção pela Covid‐19. Em outro trabalho também feito no Brasil, 79,2% dos pacientes estudados apresentaram testes confirmatórios positivos para Covid‐19 e disfunção do olfato (hiposmia e/ou anosmia).12 Essa diferença provavelmente se deve à presença de apenas pacientes ambulatoriais na segunda pesquisa.

A maioria dos entrevistados desta pesquisa apresentou uma queixa clínica de hiposmia/anosmia com duração inferior a dois meses. Kosugi et al. (2020) acompanharam os pacientes por, em média, 31 dias e identificaram que 52,6% desses participantes obtiveram recuperação completa do olfato em aproximadamente 15 dias.12

Houve uma prevalência significativamente maior de hiposmia/anosmia nos pacientes com quadro clínico leve quando comparados aos doentes com síndrome gripal grave e aos pacientes com doença crítica. Além disso, houve estatisticamente mais transtornos do olfato entre pacientes internados em enfermaria comparados aos participantes com histórico de internação em UTI. Na mesma linha, Yan et al. (2020), avaliaram 196 doentes e concluíram que aqueles com anosmia ou hiposmia apresentaram menor taxa de internação em hospitais quando comparados àqueles com função olfatória normal (OR=0,09; 95% IC [0,01–0,74]).18 Desse modo, sugerem que doentes com síndrome gripal por SARS‐CoV‐2, porém sem disfunção olfatória, busquem auxílio médico de uma forma mais precoce pela maior probabilidade de comprometimento pulmonar e pela maior chance de desenvolvimento de uma síndrome inflamatória sistêmica grave. Por fim, relatam que a presença de anosmia/hiposmia poderia funcionar como um marcador clínico relacionado à gravidade da doença, assim como a escala de APGAR no recém‐nascido.18 Em contraste com esses achados, Moein et al. (2020) e Vaira et al. (2020) não encontraram relação entre o transtorno do olfato e a gravidade da doença. Vaira afirmou que alterações do olfato relatadas por pacientes graves podem ser esquecidas em um contexto de internação prolongada e de suporte ventilatório invasivo.8,19,20 Outro estudo feito na população brasileira que incluiu pacientes internados em UTI e em enfermaria e participantes que receberam apenas tratamento ambulatorial também não identificou associação entre a presença de transtorno do olfato e a gravidade do quadro clínico dos pacientes.13

Observou‐se também uma significativa associação entre a presença de hiposmia/anosmia e disgeusia. Speth et al. (2020) encontraram importante relação entre a clínica de alteração do olfato e a alteração do paladar. Relataram que a severidade da disfunção do paladar está intimamente ligada à gravidade da disfunção do olfato.21 Apesar de ser possível que o SARS‐CoV‐2 aja nos quimiorreceptores do olfato e do paladar separadamente, é mais provável que essas queixas clínicas estejam diretamente relacionadas a um prejuízo do paladar retronasal que influencia os sabores experimentados.21

No presente estudo, os pacientes com disfunção do olfato relataram significativamente mais sintomas nasais (obstrução e/ou secreção nasal). Em um trabalho anterior à pandemia provocada pelo SARS‐CoV‐2, um outro tipo de coronavírus humano foi inoculado nas vias aéreas superiores de 19 pacientes. Nove participantes desenvolveram resfriado comum. Foi observado que, nesses pacientes, houve uma hiper‐responsividade da microcirculação subepitelial das vias aéreas superiores com aumento da exsudação do plasma, o que acarretou o edema da mucosa e a obstrução nasal.22 Baseado nisso, pode‐se pensar que, na infecção pelo SARS‐CoV‐2, também pode existir uma desordem condutiva que produza um bloqueio mecânico de moléculas de odor atingirem os quimiorreceptores do epitélio olfatório. Esse mecanismo também poderia ser responsável por gerar o transtorno da olfação nos pacientes com sintomas locais.

Os pacientes com alteração de olfato apresentaram significativamente uma maior frequência de sintomas neurológicos. Um dos mecanismos propostos sobre a disseminação do SARS‐CoV‐2 para o sistema nervoso central é através da placa cribriforme, que atinge os nervos olfatórios e o bulbo olfatório23 e leva a um quadro de encefalite viral. Tal mecanismo fisiopatológico poderia explicar a presença de cefaleia prolongada por algumas semanas em alguns indivíduos com alteração de olfato.

Os achados deste trabalho sugerem que os doentes com hiposmia/anosmia poderiam apresentar um estado de melhor competência imunológica, com maior chance de contenção do SARS‐CoV‐2 nas vias aéreas superiores. A alteração do olfato nos indivíduos com Covid‐19 poderia ser provocada tanto por edema na mucosa nasal (condutiva) quanto pela agressão viral diretamente no sistema olfatório (comprometimento do epitélio e/ou do neurônio olfatório). Um outro mecanismo proposto para o desenvolvimento da hiposmia/anomia pós‐viral seria através do aumento da produção de citocinas. Henkin et al. (2013) identificaram níveis elevados de IL–6 no muco nasal e no plasma em indivíduos com esses sintomas após resfriado, quando comparados aos controles (29,7 vs. 11,6 pg/mL; p < 0,001).24 Essa interleucina poderia regular a atividade do neurônio olfatório e das células gliais.24 Nos indivíduos graves com Covid‐19, a concentração sérica dessa substância está aumentada.16 Por outro lado, nos casos leves, pode haver um aumento localizado desse mediador, que promove, desse modo, um processo inflamatório localizado e leva a uma disfunção no sistema olfatório.

Uma limitação deste presente estudo está relacionada ao relato de anosmia/hiposmia nos pacientes hospitalizados. Os doentes internados em unidade de terapia intensiva ou enfermaria podem ter apresentado dificuldades de informar sobre a presença da disfunção olfatória durante o quadro agudo da infecção pelo SARS‐CoV‐2. Apesar de os dados referentes a esses doentes terem sido colhidos após a alta hospitalar, ou seja, em um período sem confusão mental e sem alterações clínicas, o uso de suporte de oxigênio durante a internação (intubação orotraqueal ou uso de cateter nasal) e a presença de sintomas mais severos, como a dispneia, podem alterar a percepção do paciente sobre a presença ou ausência da alteração do olfato. Outra limitação desta pesquisa foi não quantificar a perda da olfação. Os resultados obtidos, portanto, são restritos apenas aos relatos dos pacientes. Moein et al. (2020) aplicaram o teste validado UPSIT (University of Pennsylvania Smell Identification Test) em 60 pacientes internados com Covid‐19 para mensurar a disfunção olfatória. Cerca de 98% dos estudados apresentaram alteração do olfato, 83% anosmia ou hiposmia severa. Dado relevante é que apenas 35% dessa amostra apresentava queixa de disfunção do olfato antes do teste.10 Em geral, alterações no olfato são mais percebidas em casos de perda mais significativa, como na anosmia. Dessa forma, apesar de não ter sido quantificado, pode‐se inferir que o número de disfunções olfatórias pode ser maior do que o registrado nos infectados pelo SARS‐CoV‐2. Finalmente, apesar da amostra significativa de pacientes, o presente estudo foi feito em apenas um único centro hospitalar. É, portanto, geograficamente limitado.

A disfunção do olfato na Covid‐19 parece ser mais do que um sintoma dessa nova infecção. A presença de hiposmia/anosmia nos pacientes infectados pelo SARS‐CoV‐2 pode ser um preditor de bom prognóstico da doença. Possivelmente trata‐se de um espectro dessa enfermidade que acomete mais as vias aéreas superiores, sem importante comprometimento pulmonar. Desse modo, é válido pensar que a presença de disfunção do olfato como sintoma pode ser associada a um quadro clínico mais leve da Covid‐19.

Conclusão

Houve significativamente uma maior proporção de indivíduos com hiposmia/anosmia nos doentes com síndrome gripal leve. Apesar de as informações sobre essa disfunção poderem ser prejudicadas pela gravidade do estado clínico e pelo viés de memória, a alteração do olfato apresentou‐se como um fator de bom prognóstico para os indivíduos infectados pelo SARS‐ CoV‐2. Novos estudos populacionais devem ser feitos para corroborar esses achados.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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Como citar este artigo: Mendonça CV, Mendes Neto JA, Suzuki FA, Orth MS, Neto HM, Nacif SR. Olfactory dysfunction in COVID‐19: a marker of good prognosis? Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:439–44.

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