Displasia fibrosa é uma desordem benigna, na qual o osso é substituído por fibrose e trabeculado ósseo imaturo, com distribuição semelhante entre sexos, mais comum nas primeiras décadas de vida. O acometimento do osso temporal pela displasia fibrosa é raro, não há consenso se é mais comum nas formas monostóticas ou poliostóticas. Estenose do meato acústico externo e disacusia condutiva são as manifestações mais comuns. Colesteatoma é também uma complicação comum e o acometimento da cápsula ótica incomum. O tratamento cirúrgico está indicado para controle de dor ou disacusia, otorreia, colesteatoma, deformidade.
ObjetivosDescrever a experiência clínica de hospital terciário de referência com casos de displasia fibrosa do osso temporal.
MétodoAmostragem dos pacientes com diagnóstico de displasia fibrosa do osso temporal, confirmado pela tomografia, atendidos nos ambulatórios de otologia e otorrinolaringologia pediátrica, entre 2015 e 2018. As variáveis avaliadas foram idade, gênero, lateralidade, estenose do meato acústico externo, deformidade, perda auditiva, presença de colesteatoma secundário de meato acústico externo, extensão da lesão e conduta adotada.
ResultadosForam incluídos cinco pacientes, quatro do sexo feminino e um masculino, de 13‐34 anos. Três apresentaram a forma poliostótica da displasia fibrosa do osso temporal e dois a forma monostótica. Quatro apresentaram deformidade local e estenose do meato acústico externo, dois desses evoluíram com colesteatoma. Todos manifestaram algum grau de comprometimento auditivo. Todos apresentaram cápsula ótica preservada na tomografia. Duas pacientes estão em observação clínica; duas foram submetidas a timpanomastoidectomia devido a colesteatoma secundário; um foi submetido a ressecção da lesão para controle de progressão da disacusia.
ConclusãoForam descritos cinco casos de displasia fibrosa do osso temporal, desordem rara para a qual o otologista deve estar atento.
A displasia fibrosa é uma doença benigna, lentamente progressiva, de origem desconhecida, na qual o osso normal é substituído por tecido fibroso e trabeculado ósseo imaturo e desorganizado.1–3 Esse tecido tende a expandir e afinar o córtex ósseo.4
Sua prevalência gira em torno de um a 2 para cada 30.000 nascimentos, com distribuição semelhante entre os gêneros masculino e feminino, mais comum nas primeiras décadas de vida. Acomete frequentemente os ossos craniofaciais, ossos longos e costelas.1
Apresenta‐se sob três possíveis formas: monostótica (atinge apenas um osso), poliostótica não sindrômica (atinge mais de um osso) e a síndrome de McCune‐Albright, definida pela presença de displasia fibrosa poliostótica associada a desordem endocrinológica e manchas café com leite.1,3–5 O envolvimento do esqueleto craniofacial ocorre em cerca de 50% das formas poliostóticas, 27% das monostóticas e em 90% dos casos de síndrome de McCune Albright.6
O diagnóstico é baseado na combinação de achados clínicos, radiológicos, histológicos e genéticos. O exame clínico da displasia do esqueleto craniofacial mostra aumento do volume local com assimetria facial, o acometimento é mais frequente do osso maxilar, seguido do mandibular, frontal, esfenoidal, etmoidal, parietal, temporal e occipital.7 Apesar de o exame histopatológico ser considerado o padrão‐ouro, a tomografia computadorizada se configura como o exame de imagem mais acurado para o diagnóstico da displasia fibrosa óssea, assim como para o planejamento do tratamento e seguimento,8,9 pode‐se dispensar a biópsia nos casos típicos de doença estável.2
O acometimento do osso temporal é incomum e geralmente unilateral,2,3 estima‐se em torno de 11%−12% dos casos de displasia fibrosa óssea craniofacial.7
ObjetivoO objetivo deste estudo é descrever a experiência clínica de hospital de referência terciário com casos de displasia fibrosa do osso temporal (DFOT).
MétodoEstudo observacional descritivo desenvolvido nos ambulatórios de otologia e otorrinolaringologia pediátrica de hospital terciário, entre 2015 e 2018.
Foram incluídos pacientes com diagnóstico de displasia fibrosa do osso temporal, de qualquer lateralidade, confirmada pela tomografia de ossos temporais. Foram excluídos pacientes com diagnóstico duvidoso, sem o aspecto clássico em vidro fosco na tomografia de ossos temporais.
Os pacientes foram incluídos conforme sua apresentação nos ambulatórios de otologia e otorrinolaringologia pediátrica. Para cada paciente, foi preenchido um formulário com as variáveis: idade, gênero, lateralidade de DFOT, estenose do meato acústico externo, abaulamento da região temporal, perda auditiva, otorreia, colesteatoma secundário, extensão pela escama do osso temporal, mastoide, labirinto e ápice petroso e para ossos adjacentes na tomografia computadorizada, conduta adotada (conservadora ou cirúrgica) e evolução.
A investigação auditiva dos pacientes foi conduzida por meio de audiometria tonal limiar, entre 250Hz e 8000Hz. Perdas auditivas clinicamente significativas foram definidas a partir da obtenção das médias dos limiares tonais (MLT) em 500Hz, 1000Hz, 2000Hz e 4000Hz. Para o grau de perda auditiva, foi usada a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2014): leve (26−40 dB), moderada (41−60 dB), severa (61−80 dB) e profunda (> 80 dB). Para o tipo de perda auditiva foi usada a classificação de Silman e Silverman (1997), com o uso da diferença entre a MLT da via aérea e a MLT da via óssea em 500Hz, 1000Hz e 2000 Hz: condutiva, com limiares de via óssea menores ou iguais a 15dB e limiares de via aérea maiores do que 25dB, com gap aéreo ósseo maior ou igual a 15 dB; neurossensorial, com limiares de via óssea maiores do que 15dB e limiares de via aérea maiores do que 25dB, com gap aéreo‐ósseo de até 10 dB; mista, com limiares de via óssea maiores do que 15dB e limiares de via aérea maiores do que 25dB, com gap aéreo ósseo maior ou igual a 15dB.10
A avaliação da extensão da doença foi feita pela obtenção de tomografias computadorizadas de ossos temporais, avaliadas em cortes axiais e coronais.
De acordo com as normas da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde/MS para Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, este projeto de pesquisa foi submetido ao comitê de ética em pesquisa e encontra‐se aprovado sob número de CAAE 97625718.8.0000.5505.
ResultadosForam identificados cinco pacientes com DFOT em acompanhamento nos ambulatórios no período do estudo.
Dados demográficosQuatro pacientes eram do sexo feminino e um do masculino. A idade variou de 13−34 anos, com mediana em 19 anos. Quatro pacientes apresentaram DFOT à esquerda e um à direita.
Extensão das lesões à tomografiaTodos os pacientes tiveram a doença confirmada a partir do aspecto em vidro dos ossos temporais acometidos na tomografia. Dois pacientes apresentaram a forma monostótica, um deles com pequeno foco de DFOT restrito à região póstero‐superior ao labirinto da porção petrosa (fig. 1) e o outro com DFOT disseminada desde a região mais posterior da mastoide até o arco zigomático e superiormente por toda a escama, porém restrita às suturas do osso temporal (fig. 2).
Três pacientes apresentaram a forma poliostótica da doença, com extensão para a asa maior do osso esfenoide e uma delas com acometimento do parietal adjacente à porção escamosa (fig. 3).
O estreitamento da fenda timpânica pela lesão expansiva é observado nas tomografias, com exceção da paciente com lesão restrita à porção petrosa. A lesão em vidro fosco tangencia a capsula ótica em todos os pacientes, chega a circundá‐la, porém o denso tecido ósseo que envolve o labirinto encontra‐se preservado em todos os pacientes (fig. 4).
Manifestações clínicasQuatro pacientes se apresentaram com aumento de volume da região temporal afetada e estenose do meato acústico externo no início do acompanhamento, dois deles evoluíram com otorreia e colesteatoma secundário à DFOT (fig. 5) e um deles apresentou dois episódios de otalgia e otorragia, porém sem debris ou erosões (fig. 6). Uma paciente manteve a otoscopia completamente normal e ausência de deformidades cranianas, com lesão restrita à porção petrosa. Uma paciente queixava‐se de cefaleia temporoparietal, na topografia da lesão.
Todos os casos manifestaram algum grau de comprometimento auditivo. A paciente que apresentou uma lesão focal na porção petrosa apresentava um gap aéreo‐ósseo de 5dB, associado a tontura. Os demais pacientes, com maior extensão da DFOT, apresentaram perdas auditivas condutivas ou mistas, moderadas a severas (figs. 7 e 8).
Durante o seguimento, a conduta observacional foi indicada para duas pacientes. Uma delas, aos 30 anos, apresentava DFOT focal em porção petrosa a esquerda e discreta perda auditiva associada, sem estenose de conduto ou deformidade craniofacial. A outra, com 13 anos, apresentava lesão poliostótica com extensão por todo o osso temporal, perda auditiva severa estável, abaulamento da região temporal e estenose do meato acústico externo, porém não apresenta otorreia ou sinais de complicação por colesteatoma.
Três pacientes foram submetidos a cirurgia. Desses, uma teve a indicação cirúrgica por colesteatoma secundário à estenose do meato acústico externo, apresentava otorreia e foi submetida a mastoidectomia radical, manteve limpezas periódicas da cavidade cirúrgica. Outra paciente foi submetida a ressecção parcial de porção escamosa do osso temporal a parte do parietal por equipe de neurocirurgia, com a intenção de controlar queixa de cefaleia e aumento de volume nessa região, porém evoluiu com otorreia e foi diagnosticado colesteatoma na região de orelha externa e média, foi então feita uma mastoidectomia radical pela equipe de otologia e tem mantido a cavidade cirúrgica com meatoplastia ampla, sem sinais de recidiva do colesteatoma (fig. 9).
O último paciente apresentava perda auditiva mista moderada e estenose de meato acústico externo. Procedeu‐se a uma extensa ressecção da lesão com exclusão do meato acústico externo devido à progressão da doença. O paciente manteve uma perda auditiva mista moderada após a cirurgia e não se interessa por reabilitação com prótese auditiva osteoancorada (fig. 10).
Os laudos anatomopatológicos das lesões ressecadas cirurgicamente relataram proliferação de natureza fusocelular fibroblástica sem atipias e neoformação óssea trabecular ou componente mineralizado de aspecto psamomatoso, sem indícios de malignidade. A tabela 1 resume as características clínicas e demográficas dos pacientes com DFOT.
Dados demográficos e características clínicas dos pacientes com displasia fibrosa do osso temporal
Mediana | Amplitude | |
---|---|---|
Idade (anos) | 19 | 13‐34 |
n | % | |
Sexo | ||
Masculino | 1 | 20 |
Feminino | 4 | 80 |
Lateralidade | ||
Direita | 1 | 20 |
Esquerda | 4 | 80 |
Tipo de displasia fibrosa | ||
Monostótica | 2 | 40 |
Poliostótica | 3 | 60 |
Estenose do meato acústico externo | 4 | 80 |
Deformidade estética | 4 | 80 |
Cefaleia | 1 | 20 |
Perda auditiva | 5 | 100 |
Condutiva | 4 | 80 |
Neurossensorial | 0 | 0 |
Mista | 1 | 20 |
Leve | 1 | 20 |
Moderada | 1 | 20 |
Severa | 3 | 60 |
Otorreia | 2 | 40 |
Colesteatoma secundário | 2 | 40 |
Tratamento | ||
Observação clínica | 2 | 40 |
Mastoidectomia aberta | 2 | 40 |
Ressecção da lesão | 1 | 20 |
A DFOT é uma entidade rara, embora sua prevalência possa ser subestimada devido a um percentual de casos assintomáticos.1 Trata‐se de uma doença que se apresenta tipicamente nas primeiras décadas de vida, com idade média ao diagnóstico de 16−25 anos,1,11,12 característica compatível com os achados do presente estudo.
Houve uma preponderância do sexo feminino, o que também ocorre em outras casuísticas publicadas, porém de forma menos expressiva, em torno de 55%−59%.1,11
A literatura não é consensual quanto à forma mais prevalente de displasia fibrosa que envolve o osso temporal.1,5,6 Megerian et al. identificaram 70% dos pacientes com a forma monostótica da doença.12 Por outro lado, Frisch et al. descrevem uma proporção de 89% de pacientes com a forma poliostótica e 11% com a forma monostótica, há 24% de ocorrência da síndrome de McCune‐Albright;1 Boyce et al. reportaram uma ocorrência de 94% da forma poliostótica, 6% da forma monostótica.11 Tal achado pode ser justificado por discordância conceitual: enquanto Megerian et al. consideraram lesões únicas que se estendem por diferentes ossos do crânio como doença monostótica, os demais autores classificam tais casos como doença poliostótica.1 O presente estudo descreve duas formas monostóticas e três poliostóticas.
Devido à evolução lenta, frequentemente os pacientes apresentam‐se assintomáticos.3 Neste estudo, todos os pacientes apresentavam alterações auditivas, inclusive a paciente com lesão menor e mais focal. As manifestações mais comuns são estenose do meato acústico externo, com perda auditiva condutiva,2 presentes em 80% dos pacientes neste estudo. Uma paciente apresentava apenas discreta perda auditiva condutiva, sem envolvimento meatal pela lesão focal em porção petrosa. A estenose progressiva leva ao encarceramento de células epiteliais e resulta na formação de colesteatoma secundário,13 podeo apresentar extensão para a orelha média, com erosão ou fixação da cadeia ossicular,2 o que aconteceu em duas pacientes nesta amostra.
Perda auditiva neurossensorial pode decorrer do acometimento da cápsula ótica ou por complicações de colesteatoma.2 Boyce et al. identificaram uma correlação positiva entre perda auditiva neurossensorial e o comprimento do meato acústico interno, sugeriu um mecanismo de lesão por estiramento neuronal nesses pacientes.11 Todos os pacientes neste estudo apresentam cápsula óptica preservada na tomografia, mesmo aqueles que apresentavam lesão em vidro fosco em volta de toda sua circunferência. Em relatos de casos prévios, o envolvimento da orelha interna pela DFOT também não foi comum.2
Pacientes assintomáticos ou oligossintomáticos podem ser observados clinicamente.2,13 O tratamento cirúrgico é recomendado nos casos de estenose de meato acústico externo com infecções recorrentes ou colesteatoma secundário, dor local, perda auditiva condutiva, deformidade craniofacial, fratura patológica, descompressão nervosa e nos casos de necessidade de exame anatomopatológico para diagnóstico diferencial com doenças malignas.2,14 Neste estudo, duas pacientes foram submetidas a ressecção da DFOT devido a complicação por colesteatoma, uma delas foi submetida a uma ressecção parcial prévia, indicada para alívio de dor intensa local e deformidade craniana. Um paciente foi submetido a cirurgia para conter a progressão da perda auditiva.
Frisch et al., em 2014, relataram 66 casos de DFOT e descreveram que a modalidade cirúrgica mais indicada para tratamento foi a timpanomastoidectomia, seguida de biópsia incisional, canaloplastia, debulking e ressecções parciais com finalidade cosmética.1 Neste estudo, duas pacientes foram submetidas a timpanomastoidectomia com meatoplastia para redução parcial da lesão e do colesteatoma secundário. Uma dessas pacientes foi previamente submetida à ressecção em bloco da porção escamosa e parietal da lesão para controle de cefaleia, indicação que não foi encontrada nos casos descritos na literatura. Outro dado em nossa amostra que foi diferente da literatura é que um paciente foi submetido a temporalectomia na tentativa de remoção completa da lesão. Não encontramos em nossas referências informação quanto à temporalectomia em pacientes com DFOT.
ConclusãoO caráter raro da DFOT dificulta a melhor caracterização das manifestações clínicas e a definição de condutas empíricas. Nossa casuística apresentou manifestações clínicas semelhantes às da literatura, com predomínio da perda auditiva condutiva e estenose do MAE, além do aparecimento de colesteatoma secundário. Também houve concordância em relação ao predomínio dos jovens e do sexo feminino. Trata‐se de uma doença rara, para a qual o otologista deve estar atento.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Please cite this article as: Pontes‐Madruga TC, Filgueiras HV, Silva DMS, Silva LS, Testa JR. Fibrous dysplasia: rare manifestation in the temporal bone. Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:235–42.
A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.