O acotovelamento (ou kinking), a tortuosidade e os enrolamentos (ou coiling) da artéria carótida comum (ACC) são muito menos comuns do que a tortuosidade da artéria carótida interna (ACI) e também são menos relatados na literatura.
Para maior precisão, diferentes tipos de tortuosidade foram definidos. Embora definições não tenham sido relatadas para essa questão na ACC, essas definições foram inspiradas em artigos sobre a ACI. A tortuosidade é o alongamento ou redundância que cria um loop em forma de C ou S, sem um ângulo agudo. O acotovelamento ou kinking é a formação de um ângulo agudo, enquanto o enrolamento ou coiling é o alongamento em um espaço estreito, resultando em uma forma circular.1
Brown e Rowntree foram os primeiros a demonstrar a ligação entre hipertensão e o desenvolvimento de tortuosidade.2 Outros estudos começaram a apontar outros fatores de risco, como sexo feminino, aterosclerose, envelhecimento e arterite de Takayasu.3
As apresentações clínicas incluem lesões cervicais pulsáteis, disfagia4,5 e ataques isquêmicos transitórios (AIT).6 As investigações diagnósticas incluem ultrassonografia duplex e angiografia por tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM).7
Destacar essa condição é importante, porque ela pode ser confundida com aneurisma da artéria carótida,8 aumento da tireoide9 ou edema submandibular.10 Além disso, essa anomalia pode causar problemas inesperados durante cirurgias cervicais, particularmente a cirurgia de esvaziamento cervical11 e a traqueostomia.12
O arco bovino é a variante congênita mais comum da ramificação do arco aórtico, denominada padrão de arco aórtico tipo 2. É relatado que o mesmo ocorre em 13% a 27% da população. Essa anatomia variante não tem consequências clínicas. No entanto, sem conhecimento pré‐operatório, pode aumentar a dificuldade de procedimentos cirúrgicos e endovasculares que envolvam o arco aórtico.13
Neste artigo, apresentaremos um caso de kinking bilateral da artéria carótida comum e da artéria carótida interna associada ao arco aórtico bovino, com uma revisão de casos relatados anteriormente.
Relato de casoUma paciente do sexo feminino, 62 anos, hipertensa, apresentava histórico de edema pulsátil na região anterior do pescoço havia dois meses. A paciente negou qualquer histórico de trauma.
No momento do exame, o edema apresentava‐se como lesão pulsátil, mole, não dolorida, ocupava a região da tireoide, mas mais proeminente no lado direito (fig. 1). As pulsações da artéria carótida eram sentidas de maneira igual bilateralmente. A pressão arterial era 145/90.
Uma ultrassonografia duplex foi feita, mostrou kinking bilateral das ACCs sem placas ateroscleróticas. A angiotomografia foi feita, mostrou que a ACC esquerda originava‐se da artéria braquiocefálica (arco bovino), com kinking da ACC em ambos os lados próximos às suas origens. Além disso, havia kinking em ambas as ACIs e na artéria subclávia esquerda (figs. 2 e 3). Cardiomegalia não foi detectada na ecocardiografia.
A paciente era assintomática, exceto pela lesão cervical pulsátil, e as ocorrências de kinking estavam amplamente distribuídas. Portanto, a paciente foi orientada a controlar a hipertensão e fazer um acompanhamento regular. Após um ano de seguimento, não houve alteração da forma ou do tamanho do edema e a paciente não desenvolveu manifestações neurológicas ou AIT.
Revisão da literaturaForam coletados dados dos últimos 25 anos (tabela 1).
Resumo de artigos anteriores descreve casos com kinking (acotovelamento), tortuosidade e enrolamentos (coiling) da artéria carótida comum
Autor | Ano | Idade | Sexo | Tipo | Lado | Apresentação | Fatores relacionados | Correção cirúrgica |
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G. Choi et al.11 | 1998 | 60 | Masculino | Tortuosidade | ACCD | Assintomática | Não | Não |
Peter H.L et al.5 | 2000 | 70 | Feminino | Coiling | ACCE | DisfagiaLesão tumoral cervical | Hipertensão | Sim |
Gupta A et al.4 | 2005 | 82 | Feminino | Tortuosidade | ACCD | Disfagia | – | Não |
Tsunoda K et al.14 | 2005 | 74 | Feminino | Tortuosidade | ACCD | Histórico de AVC | Aterosclerose | Não |
Postura encurvada | ||||||||
Milic DJ. et al.6 | 2007 | 67 | Feminino | Coiling | ACCE | AIT | Não | Sim |
Kawano H et al.3 | 2009 | 68 | Feminino | Tortuosidade | ACCD | Assintomática | Arterite de Takayasu | Não |
Yildiz, S et al.15 | 2010 | 52 | Feminino | Tortuosidade | ACCD | Disfagia | Hipertensão | Não |
ACCE | Dispneia | Arco bovino | ||||||
ACIE | ||||||||
Katsanos S et al.16 | 2017 | 70 | Feminino | Tortuosidade | ACCD | SíncopeLesão tumoral cervical | Não | Não |
Nakamoto T et al.10 | 2018 | 86 | Feminino | Kinking | ACCD | Lesão tumoral cervical (submandibular direita) | Hipertensão | Não |
Chen P‐J et al.9 | 2018 | 58 | Feminino | Kinking | ACCD | Lesão tumoral cervical | Não | Não |
ACCD, Artéria carótida comum direita; ACCE, Artéria carótida comum esquerda; ACIE: Artéria carótida interna esquerda.
Além do resumo anterior, Iwanaga et al. notaram a presença de ACC tortuosa durante a dissecção de quatro cadáveres.12 Em um recente ensaio clínico randomizado, Iwai‐Takano et al. concluíram que o kinking da ACC é um fator de risco independente para o desenvolvimento de eventos cardiovasculares maiores.17
Em geral, a predominância do sexo feminino é um achado consistente nos casos anteriores. A ACC direita é muito mais comumente afetada do que a esquerda. Entretanto, os dois casos de coiling relatados na ACC ocorreram no lado esquerdo. Enquanto tortuosidade, coiling e kinking da ACI foram relatados em bebês e crianças, a CCA nunca foi detectada nessa idade; todos os casos eram de pacientes acima de 50 anos.1
Junto com a hipertensão e a aterosclerose, outros fatores de risco incluíram postura curvada, arterite de Takayasu e arco bovino.3,14,15 Os sintomas variaram muito, com alguns dos casos assintomáticos e descobertos acidentalmente, enquanto outros pacientes se manifestaram com eventos cerebrovasculares ou cardiovasculares maiores. O encurtamento cirúrgico foi oferecido apenas para dois pacientes que apresentavam sintomas acentuados, disfagia refratária e AIT.5,6
DiscussãoOs critérios básicos de nossa paciente são consistentes com os relatos anteriores, sendo uma mulher na sétima década de vida e hipertensa.5,10
Que seja de nosso conhecimento, apenas um caso publicado tem o mesmo padrão anatômico que o da nossa paciente, que foi relatado por Yildiz et al., o qual apresentava tortuosidade bilateral da ACC e arco bovino.15 Entretanto, os ângulos agudos formados pela ACC em nossa paciente definem a sua anomalia como kinking, em vez de tortuosidade. Além disso, a queixa apresentada era de um edema cervical pulsátil sem disfagia. Os dois casos relatados com kinking tinham lesão tumorals cervicais semelhantes.9,10
A prevalência de acometimento da ACCD foi historicamente explicada pela origem inferior da ACC esquerda com um comprimento mais longo e menor probabilidade de kinking.8 A distribuição bilateral foi encontrada apenas em nosso caso e no caso relatado por Yildiz et al.15 e ambos tinham um padrão de arco bovino associado. Isso pode ser explicado pela origem mais elevada da ACCE, visto que ela se origina do tronco braquiocefálico, de modo que o comprimento da artéria ocupará um espaço menor, tornando‐a propensa à ocorrência de kinking (fig. 4).
A paciente estudada não recebeu tratamento clínico ou cirúrgico específico, considerando a natureza benigna da doença e a ausência de qualquer compressão ou sintomas neurológicos, o que é consistente com Chen et al.9 Ainda assim, ela foi orientada a fazer acompanhamento por consultas regulares devido ao risco de desenvolvimento de complicações cerebrovasculares ou cardiovasculares.17
O reconhecimento dessas anomalias é vital, especialmente em intervenções cirúrgicas e endovasculares que envolvam o arco aórtico. Aboulhoda et al. enfatizaram a importância da avaliação angiográfica pré‐operatória da anatomia do arco aórtico para evitar potenciais complicações.18 Além disso, um diagnóstico errado pode levar a consequências fatais. Chen et al. descreveram um caso de kinking da ACCD, que foi erroneamente diagnosticada como lesão tumoral tireoidiana e encaminhada para biópsia.9 Outros relatos conseguiram explicar alguns sintomas confusionais após a exclusão de causas comuns, como disfagia, síncope e AIT.5,6
Foi relatado que outras variantes posicionais podem causar lesão cervical pulsátil. Wong et al. relataram o caso de um paciente com tronco braquiocefálico alto que se apresentava com uma lesão tumoral cervical pulsátil.19 Apresentações semelhantes foram associadas a arco aórtico cervical, como no caso descrito por Rao et al.20
ConclusãoEmbora raro, o kinking da ACC deve ser considerado no diagnóstico de uma lesão tumoral cervical pulsátil. A condição pode coexistir com um padrão de arco bovino, aumenta a complexidade da anatomia do arco aórtico, o que pode representar um obstáculo durante determinadas intervenções cirúrgicas e endovasculares; portanto, um planejamento pré‐operatório adequado é obrigatório. A condição é benigna e não requer tratamento específico, desde que não produza complicações.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Abdelaty MH. Common carotid artery kinking associated with bovine arch: a case report and review of literature. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87:753–7.
A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.