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Vol. 87. Núm. 3.
Páginas 366-369 (Maio - Junho 2021)
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Vol. 87. Núm. 3.
Páginas 366-369 (Maio - Junho 2021)
Relato de caso
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Trajeto aberrante das carótidas comum e interna e suas implicações cirúrgicas: um relato de caso
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Marina Nahas Dafico Bernardes, Natália Carasek Matos Cascudo
Autor para correspondência
nataliacascudo_c@hotmail.com

Autor para correspondência.
, Mikhael Romanholo El Cheikh, Victória Franco Gonçalves, Pauliana Lamounier, Hugo Valter Lisboa Ramos, Claudiney Candido Costa
Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (CRER), Goiânia, GO, Brasil
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Introdução

Em sua anatomia habitual, a artéria carótida comum (ACC) se origina no tronco braquiocefálico à direita e diretamente do arco aórtico à esquerda.1 A ACC então ascende no pescoço, até o bordo superior da cartilagem tireoide, no qual se bifurca. Na região cervical, as artérias carótidas comuns situam‐se uma de cada lado anterolateralmente no pescoço, relacionam‐se posteriormente com a cadeia simpática cervical e com as apófises transversas das vértebras cervicais e são recobertas pelos músculos pré‐vertebrais e pela aponeurose cervical profunda.2

Na bifurcação da ACC origina‐se a artéria carótida interna (ACI), que apresenta trajeto ascendente, em direção à base do crânio, sem emitir ramos. No entanto, são relatadas diversas variações anatômicas no seu trajeto. Estatísticas post mortem indicam que a incidência de tais variações está entre 10% e 40% da população, geralmente são bilaterais. A origem das diferentes variações é controversa. Acredita‐se que algumas representem anomalias vasculares congênitas e outras estejam relacionadas a doenças arterioscleróticas ou displasias fibromusculares.3,4

As alterações da ACI, embora frequentes, podem ser silenciosas e apresentar relação íntima com o espaço faríngeo.5 Quando sintomáticas, costumam se manifestar na parede posterior da faringe e, por isso, são de relevância clínica no contexto de cirurgias otorrinolaringológicas, como amigdalectomias, drenagens de abscessos periamigdalianos, adenoidectomias e biopsias de lesões faríngeas.3 Alterações da ACC são mais raras, porém não menos importantes, visto que a altura da sua bifurcação, o diâmetro de espessura e o grau de tortuosidade têm relevância notória para intervenções e cirurgias em topografia de pescoço.1

Em pacientes idosos, disfagia, disfonia, sensação de corpo estranho cervical e nevralgia glossofaríngea podem ocorrer e se associar a eventos arterioscleróticos e trombóticos, geram comprometimento ao fluxo sanguíneo para o encéfalo.4

A investigação e a exclusão de anomalias vasculares são de extrema importância no pré‐operatório de procedimentos cirúrgicos, a fim de evitar iatrogenias de grande gravidade. Este estudo tem, portanto, o objetivo de ilustrar um caso raro de anomalias múltiplas em trajeto de ACC e ACI à direita, que adentram regiões frequentemente abordadas nas cirurgias otorrinolaringológicas e de cabeça e pescoço.

Relato de caso

Paciente OAS, 75 anos, sexo masculino, ex‐tabagista, hipertenso e enfisematoso, comparece em julho de 2019 ao ambulatório de otorrinolaringologia de um hospital de referência do Centro‐Oeste com queixa de disfonia havia quatro anos, associada a pirose e disfagia para líquidos, sem melhoria com tratamentos convencionais antirrefluxo feitos em outro serviço. Ao exame físico otorrinolaringológico não foram vistas alterações. Como antecedentes, o paciente havia sido submetido a dois procedimentos de microcirurgia para biópsia de lesão laríngea em 2017.

Portava laudos de exames: videolaringoscopia (VLG) de 2015 com evidência de lesão em prega vocal direita, ultrassonografia (USG) cervical de 2015 sem alterações, videolaringoestroboscopia de 2016 demonstrava prega vocal direita aparentemente infiltrada com onda mucosa diminuída e lesão de aspecto leucoplásico em terço médio, com sinais de refluxo laringeofaringeo (RLF); VLG 2017 (pós‐biópsia) com diminuição da mobilidade de prega vocal esquerda. Na ocasião da primeira consulta, optou‐se por solicitar os resultados das biópsias feitas nas abordagens cirúrgicas prévias das pregas vocais e nova VLG. Optou‐se também por solicitar uma tomografia computadorizada (TC) de pescoço com contraste, devido à alteração de mobilidade de prega vocal associada com a observação de discreta assimetria em região supraglótica, para descartar a possibilidade de um tumor infiltrativo nessa região ou doença de depósito. Como conduta adjuvante foi prescrito tratamento para RLF e orientada fonoterapia.

Paciente comparece com os exames solicitados em retorno ambulatorial, no qual apresentava um anatomopatológico de 2017 com diagnóstico de cisto de corda vocal. VLG de 2020 com persistência dos sinais de RLF, laringite crônica e presença de fenda vocal. Na TC de pescoço com contraste foram identificadas diversas variações anatômicas da artéria carótida, desde sua parte comum com tortuosidades acentuadas à direita (fig. 1) e trajeto aberrante da artéria carótida interna também à direita, apresentava kinking de orientação medial a cerca de 2,0 cm da bifurcação carotídea, determinava impressão na parede posterior lateral direita da orofaringe, sem redução da coluna aérea (fig. 2). Na região laríngea foram identificados conteúdo de partes moles que ocupava parcialmente o seio piriforme e distensão de seio piriforme direito. Paciente foi encaminhado ao cirurgião vascular e orientado quanto ao risco de medidas intervencionistas inadvertidas sobre cabeça e pescoço.

Figura 1.

Artéria carótida comum (ACC) com trajeto tortuoso em tomografia computadorizada de pescoço, com contraste. (a) Corte axial no nível glótico da laringe evidencia o espaço carotídeo infraióideo, que contém a ACC (seta vermelha), a veia jugular interna e o nervo vago (não visível). (b) Corte coronal evidencia trajeto tortuoso de ACC (seta amarela), acima de sua origem no tronco braquicefálico direito.

(0,13MB).
Figura 2.

Artéria carótida interna (ACI) com trajeto aberrante em tomografia computadorizada de pescoço, com contraste. (a) Corte axial demonstra variação da trajetória da ACI no espaço parafaríngeo (seta amarela), que se encontra medializada e faz abaulamento da parede posterolateral direita de orofaringe (ponta de seta vermelha). (b) Corte coronal mostra ACI direita com trajeto aberrante, com kinking de orientação medial e aspecto serpiginoso (seta amarela) associado a abaulamento faríngeo (ponta de seta vermelha). (c) Corte sagital evidencia kinking de ACI (seta amarela).

(0,1MB).
Discussão

Anomalias vasculares da artéria carótida comum ou de seu ramo interno devem ser sempre lembradas no diagnóstico diferencial de abaulamentos da parede faríngea. As mais comuns são tortuosidades, acotovelamentos (kinking) e enrolamentos (coiling).3,5 Lesões nessas artérias podem ter consequências catastróficas e, por isso, é prudente fazer uma avaliação pré‐operatória criteriosa nos pacientes candidatos a procedimentos cirúrgicos otorrinolaringológicos.5

No caso em questão, o paciente havia sido submetido previamente a duas biópsias laríngeas em outro serviço quando chegou para nossa avaliação. A feitura inadvertida de biópsias ou punções em casos como o descrito poderia levar a desfechos fatais, especialmente porque o espaço parafaríngeo é uma região difícil de ser avaliada apenas clinicamente, devido à sua profunda localização no pescoço.6,7

Na presença de lesões que geram abaulamentos atípicos na parede da laringe ou faringe, torna‐se imperativa a solicitação de exames de imagem, como TC, RM e angiografia, pois permitem uma avaliação mais precisa.5 Tendo em vista o custo e a disponibilidade, a TC contrastada pode ser um exame de grande valia na investigação. Nesse contexto, a arteriografia deve ser indicada para aquelas massas que necessitem de maiores esclarecimentos.6

Geralmente as alterações descritas são assintomáticas. Entretanto, pode haver reduções no suprimento sanguíneo ao cérebro conforme a movimentação da cabeça e pescoço e eventuais compressões em outras estruturas importantes. Os pacientes podem apresentar abaulamentos e pulsações faríngeas, além da sensação de corpo estranho faríngeo e odinofagia.8 É desconhecida a incidência real de hemorragia devido à aberrância carotídea.9 Contudo, haja vista que a ACC se bifurca no nível superior da cartilagem tireoidiana e no nível vertebral cervical de C4 e C5, anomalias de trajeto aumentam consideravelmente as chances de lesão arterial, destacam a necessidade de cautela também nas abordagens cirúrgicas da tireoide.10

O espaço parafaríngeo contém estruturas importantes, como as artérias carótida interna; maxilar e alveolar inferior; a veia jugular interna; os nervos lingual, auriculotemporal, os pares cranianos de números IX, X, XI e XII; o tronco simpático cervical; e numerosos nódulos linfáticos. Vale ressaltar que, dada a proximidade anatômica de estruturas nobres do pescoço no espaço parafaríngeo, queixas de disfagia e disfonia podem ocorrer devido a tumorações que levam à compressão do nervo vago (X par).6 No caso relatado, o paciente queixa‐se de disfagia, que não se justifica pelo quadro crônico de alterações mucosas de pregas vocais, pode‐se suspeitar da hipótese de compressão do nervo vago.

Como diagnósticos diferenciais, cita‐se a possibilidade de aneurismas de carótida, linfonodomegalias, tumores faríngeos, paragangliomas carotídeos e tumores de lobo profundo de parótida. Ainda que os kinkings possam apresentar repercussões no fluxo sanguíneo cerebral incapacitantes ou até fatais, essa não é sua apresentação típica e, geralmente, a conduta frente à avaliação da cirurgia vascular é expectante.8

No caso descrito, optamos pela investigação imagenológica com TC contrastada de pescoço e, após o diagnóstico, o paciente foi encaminhado à cirurgia vascular, decidiu‐se por conduta expectante com seguimento semestral.

Conclusão

O conhecimento da anatomia dos vasos cervicais e das suas possíveis variações é de suma importância para os cirurgiões no planejamento de intervenções, guia uma avaliação pré‐operatória completa e um transoperatório mais seguro. Destaca‐se a importância de solicitar exames de imagem, como a TC contrastada de pescoço, que auxilia no diagnóstico diferencial de tumores, doenças de depósito e de trajetos aberrantes de grandes vasos cervicais, ainda que não seja possível observar pulsação, como no caso relatado. Portanto, tais exames devem ser feitos nos casos de pacientes com abaulamento submucoso em região da rino, oro ou hipofaringe, bem como na observação de assimetrias e/ou distorções anatômicas. Dessa forma, o presente estudo contribui para o enriquecimento da comunidade científica ao relatar uma manifestação rara ocasionada pela associação do trajeto anômalo da artéria carótida em suas porções comum e interna.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Referências
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Como citar este artigo: Bernardes MN, Cascudo NC, Cheikh MR, Gonçalves VF, Lamounier P, Ramos HV, et al. Aberrant common and internal carotid arteries and their surgical implications: a case report. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87:366–9.

A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.

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