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Vol. 88. Núm. S1.
Páginas S91-S96 (Novembro - Dezembro 2022)
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Vol. 88. Núm. S1.
Páginas S91-S96 (Novembro - Dezembro 2022)
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Recrutamento vestibular: nova aplicação para um conceito antigo
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Roseli Saraiva Moreira Bittara, Raquel Mezzalirab,
Autor para correspondência
raquelmezzalira@uol.com.br

Autor para correspondência.
, Alice Carolina Mataruco Ramosa, Gabriel Henrique Rissoa, Danilo Martin Reala, Signe Schuster Grasela
a Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Departamento de Otorrinolaringologia, São Paulo, SP, Brasil
b Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Otorrinolaringologia, Campinas, SP, Brasil
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Resumo
Introdução

O recrutamento vestibular é um sinal de hiperexcitabilidade dos neurônios vestibulares centrais e pode ser característico de lesão vestibular periférica.

Objetivo

Definir o índice de recrutamento pós‐calórico e sua capacidade de predizer o estágio de compensação vestibular e lesão periférica.

Método

Em primeiro lugar, demonstramos que valores maiores na estimulação pós‐calórica fria em relação à estimulação quente foram equivalentes ao recrutamento vestibular observado durante o teste de aceleração harmônica sinusoidal. Na etapa seguinte, os pacientes com queixas vestibulares e controles assintomáticos foram submetidos à prova calórica. Calculamos o índice de recrutamento pós calórico para o grupo controle. No grupo de estudo, analisamos a relação entre o recrutamento pós‐calórico e predomínio labiríntico, bem como os tipos de diagnósticos vestibulares.

Resultados

O recrutamento pós‐calórico médio foi de 17,06% e 33,37% nos grupos controle e estudo, respectivamente. A razão entre o recrutamento pós‐calórico e o predominício labiríntico foi de 1,3 no grupo de estudo. Nos sujeitos com recrutamento, não foi observada diferença significativa de predominício labiríntico do lado lesionado ou saudável. Não encontramos diferenças de diagnóstico vestibular entre sujeitos com recrutamento e sem recrutamento.

Conclusão

O índice de recrutamento pós‐calórico identificou tônus vestibular assimétrico e compensação central. O valor normal foi estabelecido em 17,06%.

Palavras‐chave:
Recrutamento vestibular
Compensação vestibular
Prova calórica
Texto Completo
Introdução

O reflexo vestíbulo‐ocular (RVO) é considerado uma ferramenta fundamental para detectar doenças do sistema vestibular. Pelo menos três neurônios estão envolvidos no RVO básico, inclusive o oitavo nervo craniano e o primeiro neurônio da via vestibular.1 Durante o repouso, a entrada neural de ambas as orelhas é constante e simétrica. Ela sustenta um tônus estável e simétrico de ambos os núcleos vestibulares. Uma lesão periférica interrompe o equilíbrio entre os núcleos. Nesse ponto, os mecanismos compensatórios que envolvem a plasticidade neural são iniciados com o objetivo de restabelecer o tônus simétrico dos núcleos vestibulares, conhecido como compensação central.2–4

Quando um nervo lesionado que não responde a estímulos de baixa intensidade é capaz de gerar uma resposta dentro ou até acima dos limites normais à medida que o estímulo aumenta, isso é chamado de “recrutamento neural”.5 Van Egmond cunhou o termo “recrutamento vestibular” em 1949.6 O autor observou que alguns indivíduos com lesão vestibular não apresentavam respostas à aceleração angular de baixa frequência durante a prova rotatória, mas tinham respostas normais à estimulação de alta frequência. Posteriormente, outros autores demonstraram que em uma orelha normal a resposta vestibular é exatamente proporcional ao estímulo de aceleração angular, mas mostra um aumento exponencial nas orelhas lesionadas durante a prova rotatória.7,8 O recrutamento vestibular foi aceito como um evento objetivo que reflete o dano à informação periférica, o equilíbrio entre os núcleos vestibulares e o estágio de compensação central.6,9 Alguns autores usaram o estímulo calórico para detectar o recrutamento vestibular em um protocolo não usado na prática clínica.1,10

A prova calórica é amplamente usada para investigar a atividade de cada labirinto separadamente e, teoricamente, é capaz de detectar o lado lesionado. A estimulação calórica unilateral clássica produz tônus assimétrico dos núcleos vestibulares e induz uma resposta que é similar a uma lesão aferente periférica com hipofunção unilateral.

O predominício labiríntico (UW, do inglês unilateral weakness) é uma medida que avalia se as respostas são simétricas entre os dois labirintos e demonstra uma relação funcional de ambas as orelhas. Ele detecta informações vestibulares assimétricas e hipofunção unilateral. A ideia é questionável, pois o predominício labiríntico pode não existir nas lesões bilaterais.

A estimulação alternada excitatória (quente) e inibitória (fria) de ambas as orelhas permite avaliar o estágio de compensação central em pacientes com doenças vestibulares. Quando a informação aferente do VIII nervo está parcialmente comprometida, o estímulo quente (excitatório) não produzirá uma resposta eficaz para acionar os neurônios motores.11 O núcleo desaferentado produz uma resposta fraca porque o estímulo periférico é mais fraco e as vias comissurais enviam sinais inibitórios do núcleo saudável contralateral. Por outro lado, o estímulo frio inibitório reduz ainda mais a informação periférica e a atividade basal do núcleo lesionado. Assim, a resposta final reflete o tônus basal do lado saudável maximizado pela ausência de inibição do lado lesionado. O núcleo saudável contralateral não é inibido pela via comissural e mostra uma forte resposta à estimulação.12 Essa assimetria só pode ser explicada pelo aumento do tônus do núcleo vestibular saudável contralateral. Nesse caso, podemos dizer que o recrutamento neural é positivo.1,6

Os fundamentos fisiológicos mostram que uma relação aumentada entre frio e quente na mesma orelha sugere tônus assimétrico entre os núcleos vestibulares. Essa assimetria pode resultar de uma lesão da via aferente e fornece informações sobre o estágio de compensação do paciente. Os exames vestibulares de rotina não incluem a pesquisa do recrutamento pós‐calórico (PCR, do inglês post‐caloric recruitment). Em nossa prática clínica, observamos que pacientes com PCR apresentam recrutamento na prova rotatória, o que sugere comprometimento da aferência vestibular. Essa observação clínica exigiu mais investigação. Portanto, o objetivo foi observar o recrutamento do sistema vestibular por meio de respostas à prova calórica de rotina com o uso de irrigação com água a 30o e 44oC.

Objetivos

Estabelecer os valores normais para a razão da velocidade angular da componente lenta (AVSP, do inglês angular velocity of the slow phase) obtida pela estimulação fria e quente da mesma orelha denominada índice de recrutamento pós‐calórico (PCRI, do inglês post‐caloric recruitment index).

Verificar se o PCRI pode prever o estágio de compensação vestibular e dano periférico.

Método

Este estudo de coorte transversal foi aprovado pelo comitê de ética da instituição (n° 2.841.376, 24 de agosto de 2018). O estudo foi feito no ambulatório de otoneurologia, no período de 2018 a 2020.

Primeira fase: testando a hipótese

Avaliamos 21 pacientes com tontura de etiologia vestibular (vertigem, desequilíbrio, instabilidade) para testar a hipótese de que o PCR representa o recrutamento do nervo vestibular. A média da velocidade angular da componente lenta (AVSP) para estimulação fria foi pelo menos 3 graus maior em comparação com a média da AVSP com irrigação quente em todos os indivíduos (média da AVSP fria – média da AVSP quente>3). Todos os sujeitos foram submetidos ao teste de aceleração harmônica sinusoidal (SHAT, do inglês sinusoidal harmonic acceleration test) em cadeira rotatória (Nydiag 200, Interacoustics) com frequências de teste de 0,04Hz e 0,16Hz. O sujeito senta‐se em uma cadeira controlada por computador que gira alternadamente no sentido horário e anti‐horário em diferentes frequências.13 Os parâmetros do teste estão descritos na tabela 1. Quarenta e seis voluntários saudáveis assintomáticos compuseram o grupo controle e fizeram os mesmos testes. Os resultados da investigação inicial foram usados no desenho do método deste estudo.

Tabela 1.

Parâmetros de teste de aceleração harmônica sinusoidal

Velocidade (graus/segundo)  Frequência (Hz)  Ciclos  Tempo de teste (minutos)  Direção 
50  0,040  1:15  Esquerda 
50  0,160  0:37  Esquerda 
Segunda fase: cálculo do PCRIAmostra

Selecionamos um grupo controle de 133 voluntários saudáveis sem queixas vestibulares (77 mulheres e 56 homens) para obter o valor do PCRI. Todos os sujeitos fizeram a prova calórica. Somente indivíduos sem histórico de tontura foram incluídos.

O grupo de estudo foi composto por 381 sujeitos com queixas vestibulares (262 mulheres e 119 homens), recrutados no ambulatório de otoneurologia. As queixas clínicas incluíam qualquer tipo de tontura com duração e evolução variáveis. Todos os pacientes foram submetidos ao protocolo de investigação clínica padrão: história clínica, exame otorrinolaringológico, avaliação dos nervos cranianos, testes de equilíbrio estático e dinâmico (Romberg e Fukuda), provas de coordenação e prova calórica.

Os critérios de inclusão foram os mesmos para os dois grupos: idade igual ou superior a 18 anos; capacidade cognitiva para entender e fazer os testes; e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido. Os critérios de exclusão foram deficiência cognitiva; doenças oculares, cervicais, reumáticas e ortopédicas que impediam a realização dos testes.

Método

Os equipamentos Interacoustics VN415 (Dinamarca) e ICS Chartr 200 Otometrics (Dinamarca) foram usados na prova calórica. Os estímulos calóricos foram administrados por meio de irrigação com água a 44o e 30o graus Celsius nesta ordem: orelha esquerda quente, orelha direita quente, orelha esquerda fria, orelha direita fria. A fórmula de Jongkees foi usada para calcular o predominício labiríntico.14 A UW acima de 20% foi considerada anormal.15

O índice de recrutamento pós‐calórico (PCRI) foi definido para o grupo controle (indivíduos saudáveis) com base na fórmula de Jongkees, comparando os resultados do prova bitérmica da AVSP na mesma orelha: PCRI=(AVSP fria ‐ AVSP quente / AVSP fria+AVSP quente)×100.

A fórmula foi usada para os resultados da prova calórica de todos os sujeitos. Consideramos o resultado do teste positivo quando os estímulos frios produziram valores maiores do que os estímulos quentes. Todos os resultados positivos dos teste foram analisados. Esses resultados foram usados para determinar o PCRI de cada orelha em ambos os grupos. O valor médio obtido entre os indivíduos saudáveis foi considerado um PCRI normal. Também avaliamos a UW em ambos os grupos. Os sujeitos do grupo de estudo com PCRI acima do valor médio da amostra do grupo controle foram considerados como apresentando “recrutamento”.

Por fim, analisamos o diagnóstico subjacente dos sujeitos do grupo de estudo e a proporção de indivíduos PCRI positivos e negativos.

Análise estatística

Na primeira fase do estudo, a distribuição normal do SHAT foi testada com o teste de Kolmogorov‐Smirnov. A média e desvio padrão foram submetidos ao teste t.

Na segunda fase, a distribuição dos valores de PCRI foi testada através do teste de Kolmogorov‐Smirnov. A média e desvio‐padrão de ambos os grupos foram submetidos ao teste t. Os valores medianos e o desvio‐padrão foram apresentados em gráficos do tipo boxplot. O teste exato de Fisher foi usado para estudar a associação entre o PCRI, a prova calórica, a UW e o diagnóstico.

A significância foi estabelecida com alfa=0,05 e intervalo de confiança de 95%.

ResultadosPrimeira fase de estudo: teste de hipótese

A primeira fase comparou 21 indivíduos sintomáticos [(média da AVSP fria) ‐ (média da AVSP quente)>3] e 46 voluntários. Os resultados do SHAT são mostrados na figura 1. Observamos uma diferença significante do ganho médio de AVSP do reflexo rotatório na aceleração de 0,04Hz (indivíduos saudáveis: 50,06, pacientes: 33,28, p <0,002). Nenhuma diferença foi detectada entre os grupos na frequência de 0,16Hz (indivíduos saudáveis: 55,68; pacientes com doenças vestibulares: 50,57; p=0,41). Esses resultados apoiam a hipótese de que há recrutamento vestibular em indivíduos sintomáticos.

Figura 1.

Ganho do RVO nas frequências de 0,04 e 0,16Hz em indivíduos saudáveis e com tontura submetidos ao teste de aceleração harmônica sinusoidal (SHAT).

(0,05MB).
Segunda fase de estudo: cálculo do PCRI

A segunda fase do estudo calculou o PCRI de 133 indivíduos (266 orelhas) sem queixas (grupo controle saudável), 77 (56%) mulheres e 56 (42%) homens com média de 42 anos. Das 266 orelhas, selecionamos 147 (55%) com [(média da AVSP fria) ‐ (média da AVSP quente)>3] para estabelecer a média e o desvio‐padrão. O PCRI médio foi de 17,06%, com desvio‐padrão: 12,48, e mediana: 13,51.

O grupo de estudo consistiu em 262 (69%) mulheres e 119 (31%) homens, com média de 52 anos. Das 762 orelhas, 467 (61%) com média [(média da AVSP fria) ‐ (média da AVSP quente)> 3] foram avaliados. A média do PCRI foi de 33,37%, DP=25,56 e mediana de 28,88, e foi significantemente maior quando comparada aos indivíduos do grupo controle (p <2,2 e‐16, IC 95%). Os valores de ambos os grupos são mostrados em um gráfico do tipo boxplot (fig. 2).

Figura 2.

Gráfico de boxplot mostra a distribuição de PCRI (%) de 133 indivíduos saudáveis (mediana: 13,51) e 381 pacientes (mediana: 28,88), (p <2,2e‐16, IC de 95%).

(0,06MB).

O teste bicaudal de Fisher com tabelas de contingência 2×2 foi usado para analisar a associação de UW e PCRI ≥ 17% em ambos os grupos. Foram encontrados mais casos de UW entre os indivíduos do grupo de estudo do que entre os controles saudáveis (p=0,0003). A razão entre o PCRI (180) e a UW (136) foi de 1,3 (p=0,0001) no grupo de estudo. Comparando o PCRI unilateral com o bilateral, a UW foi mais frequente nos casos unilaterais (p=0,0023). Analisando o recrutamento unilateral e a UW, não houve diferença entre a UW ipsilateral ou contralateral (p=0,344451). Em cerca de 50% dos casos, a UW estava localizada no lado saudável.

Os diagnósticos não diferiram entre os indivíduos do grupo de estudo com recrutamento e sem recrutamento, sugerindo não haver relação entre o diagnóstico específico e o recrutamento (tabela 2). Não houve diferença significante de recrutamento central entre os dois grupos (p=0,1115).

Tabela 2.

Tipos de diagnósticos entre os sujeitos do grupo de estudo. REC significa respostas mais altas à estimulação fria do que a quente; sREC significa respostas semelhantes com a estimulação quente e fria (*p <0,05)

Diagnóstico  REC  sREC  p 
Migrânea  38  26  0,079 
Síndrome Vestibular Central  58  95  0,647 
Distúrbio cocleovestibular metabólico / hormonal  31  25  0,316 
Tumor do ângulo cerebelopontino  0,292 
Ansiedade / Estresse  0,319 
Periférico (neurite, VPPB)  11  0,814 
Hidropisia  0,605 
Outros distúrbios cocleovestibulares (cinetose, contato neurovascular)  23  28  0,881 
Sem diagnóstico  12  0,146 
Total de sujeitos  180  201   
Discussão

Quando submetidos à prova rotatória, os indivíduos com comprometimento vestibular apresentaram respostas normais à rotação de alta frequência, mas respostas significativamente mais baixas à rotação de baixa frequência quando comparados ao grupo controle, confirmando o recrutamento (REC) observado durante a prova calórica. Esse resultado apoia o conceito de que a prova calórica convencional identifica pacientes com “recrutamento”. Assim, o REC permite a observação da orelha doente individual com um método acessível e de baixo custo.

Durante a prova calórica do labirinto lesionado, o estímulo quente evoca uma corrente excitatória com uma resposta diminuída. Entretanto, o estímulo frio evoca a desinibição do núcleo contralateral, já com tônus aumentado, resultando na dissociação das respostas quente/fria. Assim, o recrutamento pós‐calórico é uma combinação de efeitos periféricos e centrais. As células nucleares do tipo II são altamente relevantes nesse processo, pois são as únicas com potencial inibitório na via vestibular. Essas células estão presentes no sistema comissural, responsáveis pela plasticidade que reequilibra a atividade neuronal entre os dois núcleos vestibulares. O recrutamento sugere que a intensidade do estímulo e a resposta dos neurônios motores oculares são regidos pela modulação central. Normalmente, uma estimulação abaixo do limiar da orelha interna não irá gerar uma resposta, mas estímulos repetidos irão somar os sinais excitatórios nas vias vestibulares e facilitar as respostas centrais. Sob condições patológicas, apenas estímulos mais fortes evocarão uma resposta, sugerindo que o limiar excitatório do sistema vestibular central é elevado.11 Seguindo esse conceito, é razoável supor que o REC indique algum tipo de atividade do sistema vestibular que pode desaparecer após o tratamento ou compensação vestibular efetiva.

Após a compensação vestibular, as informações do nervo vestibular saudável, substituem as aferências lesionadas (parcial ou completamente) e regulam ambos os núcleos vestibulares.3 O reequilíbrio das vias comissurais envolve tanto os núcleos vestibulares quanto o flóculo cerebelar. Esses são mecanismos adaptativos de neurotransmissores inibitórios (GABA) e excitatórios nas células do núcleo vestibular medial desaferentadas. Além disso, ocorrem a adaptação do impulso inibitório do flóculo e a reorganização sináptica. Sintomas estáticos, como nistagmo espontâneo, podem desaparecer durante o progresso da compensação. Ainda disso, o dano dinâmico ao RVO após a lesão periférica pode nunca ser totalmente recuperado, mesmo em longo prazo.4 Portanto, uma lesão vestibular periférica é capaz de induzir a hiperexcitabilidade central.

É preciso cautela quando se tenta identificar a origem do recrutamento nos distúrbios vestibulares centrais: central ou periférica. De acordo com Ghosh,10 quando os valores da velocidade angular da componente lenta são inicialmente elevados e aumentam rapidamente conforme o estímulo aumenta, a hiperatividade do sistema está presente e o recrutamento central é sugerido. Nesse caso, a lesão afeta os mecanismos inibitórios das vias vestibulares. A assimetria pós‐calórica pode ser o resultado da hiperatividade quando a velocidade angular está aumentada ou aumentando gradualmente durante o teste. A lesão do núcleo vestibular ou fibras intercomissurais pode mimetizar o recrutamento originado de uma lesão periférica.10 A análise morfológica do nistagmo pós‐calórico, a ausência do efeito inibitório da fixação ocular ou o comprometimento da atividade oculomotora permitem o diagnóstico diferencial.16 O recrutamento periférico só é detectado quando há hipoatividade após estimulo quente e uma resposta desproporcional após estimulo frio sem quaisquer sinais centrais.

Quando o recrutamento está presente em indivíduos com sintomas vestibulares e lesão periférica, isso sugere que a compensação central ainda não está completa. De fato, observamos em nossa prática clínica que pacientes com recrutamento costumam apresentar bons resultados após o tratamento adequado dos fatores etiológicos e da reabilitação vestibular. A recuperação funcional do RVO pode ocorrer após a conexão de sinapses com as células ciliadas parcialmente lesionadas, seguida por recuperação parcial ou total da função sináptica e, portanto, modulação da compensação central.17 O SNC responde à entrada de novas informações periféricas que podem não ser equivalentes aos sinais aferentes anteriores à lesão. A reaferentação pode prolongar o processo de compensação, prolongando assim o período de recrutamento.

Não apenas os sintomas vestibulares, mas também os fatores metabólicos e hormonais devem ser considerados para se obter um controle adequado da atividade da doença. Além disso, a indicação adequada de exercícios é crucial para a compensação central.18 O recrutamento representa um período de “atividade neural” tentando restabelecer o equilíbrio funcional entre os dois núcleos vestibulares. O ciclo hormonal feminino, o estresse, a ansiedade e a depressão podem alterar o eixo hipotálamo‐pituitária‐adrenal e afetar a compensação central. Os glicocorticoides podem modular a função sináptica e central, interagir com os canais iônicos da membrana celular e regular a atividade dos neurotransmissores.4 Alguns esteroides têm efeitos negativos na compensação central, razão pela qual pacientes ansiosos podem apresentar evolução clínica prolongada. Da mesma forma, a recuperação clínica prolongada pode ser encontrada em pacientes com síndrome pré‐menstrual, pois a progesterona e seus metabólitos podem modular a expressão dos receptores GABA dos núcleos vestibulares.18 Nesses casos, o tratamento do distúrbio hormonal é capaz de melhorar a compensação central dos pacientes, reduz o período adaptativo de recrutamento.

Os sujeitos do grupo de estudo fazem parte de uma coorte transversal e apresentam diferentes tipos de diagnósticos e duração das doenças vestibulares; portanto, o desvio‐ padrão elevado era esperado. Consideramos a presença de “recrutamento” em pacientes com valores de PCRI>17%. Como mostrado na figura 2, o gráfico em boxplot da média do PCR indica alta variabilidade das médias em ambos os grupos. A variabilidade encontrada nos sujeitos do grupo de estudo parece refletir os diferentes estágios da lesão e a evolução da compensação central. O elevado desvio‐padrão, mesmo em indivíduos assintomáticos sem história de tontura, é um achado interessante. Isso pode sugerir que o sistema vestibular é capaz de manter a estabilidade postural e o desempenho dinâmico mesmo com a entrada de informações assimétricas. Isso pode ocorrer após infecção, inflamação, flutuação hormonal ou metabólica, eventos comuns durante a vida de uma pessoa. Quanto maior for a assimetria entre os núcleos vestibulares, maior será o PCRI. Entre os indivíduos sintomáticos do grupo de estudo, o índice se refere à evolução da compensação central e não apenas descreve o “estado” da lesão. Isso ajuda a desenvolver estratégias de tratamento para o paciente e predizer o prognóstico da doença vestibular.9,19

O predominício labiríntico (UW) é um parâmetro comumente usado para identificar o labirinto lesionado na doença periférica. O predominício labiríntico é importante, pois indica o lado lesionado antes da intervenção ou cirurgia. No entanto, no caso de hiperfunção unilateral, o lado normal parece ser funcionalmente “mais fraco”. Em pacientes com doença unilateral, o PCRI foi mais frequente do que a UW (1,3 a 1,0). Esse achado é esperado, pois a fórmula da UW é baseada na avaliação de ambos os labirintos. A doença bilateral pode ser negligenciada, quando ambos os lados mostram a AVSP reduzida com diferenças não significantes para obter‐se o índice.1 É particularmente preocupante quando não há diferença entre o PCRI e a UW ipsilateral e contralateral, de forma que não é possível identificar o labirinto lesionado simplesmente através da UW, especialmente no caso de indicação cirúrgica. O PCRI é capaz de detectar disfunções de cada orelha individualmente e evitar intervenções inadequadas.

Para o diagnóstico, dividimos o grupo de estudo em sujeitos “com recrutamento” e “sem recrutamento” e não encontramos diferenças entre os grupos. O recrutamento central foi observado igualmente em ambos os grupos. Esse achado sugere que o REC não está relacionado ao diagnóstico sindrômico, mas sim reflete o estágio funcional das vias vestibulares.

Finalmente, o PCRI pode fornecer informações valiosas para o manejo de doenças vestibulares sem custo, tempo ou inconveniência adicional para o paciente na avaliação diagnóstica de rotina. É útil para identificar a orelha afetada separadamente e fornecer informações sobre o progresso da compensação central. O PCRI não é útil apenas para o diagnóstico, mas também para o manejo clínico e o prognóstico da lesão.

Nossos resultados têm implicações práticas para o atendimento clínico e mais estudos são necessários para confirmar a relação entre o recrutamento vestibular na prova calórica, o dano periférico e o estágio de compensação vestibular. Na ausência de doença central, o PCRI calculado a partir da prova calórica parece ser uma ferramenta de baixo custo, útil e prática para identificar a lesão periférica.

Conclusão

O valor normal do PCRI foi estabelecido em 17,06%. Ele detectou tônus vestibular assimétrico devido ao dano periférico e pode predizer o estágio de compensação central.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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Como citar este artigo: Bittar RS, Mezzalira R, Ramos AC, Risso GH, Real DM, Grasel SS. Vestibular recruitment: new application for an old concept. Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:S91–S96.

A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.

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Brazilian Journal of Otorhinolaryngology
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