Compartilhar
Informação da revista
Vol. 81. Núm. 2.
Páginas 148-157 (Março 2015)
Compartilhar
Compartilhar
Baixar PDF
Mais opções do artigo
Vol. 81. Núm. 2.
Páginas 148-157 (Março 2015)
Open Access
Auditory and language skills of children using hearing AIDS
Visitas
5843
Leticia Macedo Pennaa, Stela Maris Aguiar Lemosa, Cláudia Regina Lindgren Alvesa
a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
Este item recebeu

Under a Creative Commons license
Informação do artigo
Resume
Texto Completo
Bibliografia
Baixar PDF
Estatísticas
Tabelas (6)
Tabela 1. Características gerais das crianças avaliadas e suas famílias
Tabela 1. (Continuação)
Tabela 2. Aspectos da intervenção fonoaudiológica segundo o grau da perda auditiva
Tabela 3. Distribuição das crianças segundo o grau de perda auditiva e o tipo de comunicação utilizada e os resultados dos testes de linguagem oral e escrita
Tabela 4. Associação entre o grau da perda auditiva e o tipo de comunicação utilizada pelas crianças com deficiência auditiva
Tabela 5. Desempenho da população elegível nos testes auditivos, GASP e TFDF, segundo o grau de perda auditiva
Mostrar maisMostrar menos

Introdução: A deficiência auditiva pode comprometer o desenvolvimento infantil. O processo de reabilitação dos indivíduos com perda auditiva depende de intervenções eficientes.

Objetivo: Descrever o perfil linguístico e as habilidades auditivas de usuários de Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI), caracterizar o processo de intervenção fonoaudiológica e analisar sua relação com o grau da perda auditiva das crianças.

Método: Estudo transversal com amostra não-probabilística composta por 110 crianças de 6 a 10 anos de idade, com perda auditiva de grau leve a profundo, usuárias de AASI. Foram realizados testes de linguagem, percepção de fala, discriminação fonêmica e desempenho escolar. As associações foram verificadas pelos testes χ2 de tendência linear e Kruskal-Wallis.

Resultados: Cerca de 65% das crianças apresentavam alteração do vocabulário, 89% de fonologia e 94% tiveram desempenho escolar considerado inferior. O grau da perda auditiva mostrou-se associado a diferenças nas medianas das idades de diagnóstico, de adaptação do AASI e de início da fonoterapia; do tempo entre diagnóstico e adaptação do aparelho auditivo; ao resultado dos testes auditivos e ao tipo de comunicação utilizada.

Conclusão: Independentemente do grau de perda auditiva, o diagnóstico e as intervenções necessárias ocorreram tardiamente, com prejuízo das habilidades linguísticas e auditivas destas crianças.

Palavras-chave:
Perda auditiva
Linguagem infantil
Auxiliares de audição
Percepção auditiva
Correção de deficiência auditiva

Introduction: Hearing loss may impair the development of a child. The rehabilitation process for individuals with hearing loss depends on effective interventions.

Objective: To describe the linguistic profile and the hearing skills of children using hearing aids, to characterize the rehabilitation process and to analyze its association with the children’s degree of hearing loss.

Methods: Cross-sectional study with a non-probabilistic sample of 110 children using hearing aids (6-10 years of age) for mild to profound hearing loss. Tests of language, speech perception, phonemic discrimination, and school performance were performed. The associations were verified by the following tests: chi-squared for linear trend and Kruskal-Wallis.

Results: About 65% of the children had altered vocabulary, whereas 89% and 94% had altered phonology and inferior school performance, respectively. The degree of hearing loss was associated with differences in the median age of diagnosis; the age at which the hearing aids were adapted and at which speech therapy was started; and the performance on auditory tests and the type of communication used.

Conclusion: The diagnosis of hearing loss and the clinical interventions occurred late, contributing to impairments in auditory and language development.

Keywords:
Hearing loss
Child language
Hearing aids
Auditory perception
Correction of hearing impairment
Texto Completo

Introdução

A perda auditiva é uma doença de alta prevalência, variando de 1 a 3: 1.000 indivíduos, e este número aumenta na presença de indicadores de risco para deficiência auditiva.1,2 Sua principal consequência, especialmente na criança, reside no impacto causado pela privação sensorial no desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem e na aprendizagem. Qualquer grau de deficiência auditiva pode acarretar prejuízos importantes, já que interfere na percepção e na compreensão dos sons da fala.3

No cenário nacional, devido à magnitude social da prevalência de deficiência auditiva e suas consequências na população brasileira, o Ministério da Saúde4,5 instituiu os Serviços de Atenção à Saúde Auditiva (SASA) que, juntamente, com Programas de Triagem Auditiva Neonat, têm como objetivo o diagnóstico precoce, a intervenção e a reabilitação dos sujeitos com deficiência auditiva.

Os primeiros anos de vida são considerados críticos para o desenvolvimento. É na infância que ocorre o ápice do processo de maturação do sistema auditivo central, assim como da plasticidade neuronal.6 Isso torna a detecção precoce da deficiência auditiva fundamental para minimizar os prejuízos e os impactos causados pela perda auditiva no desenvolvimento de linguagem e das habilidades auditivas, assim como na aprendizagem.6-11

Além do diagnóstico precoce, a literatura também aponta a relevância da intervenção fonoaudiológica no sucesso da reabilitação das crianças com deficiência auditiva.6,7 Quanto mais cedo o diagnóstico auditivo e a intervenção fonoaudiológica forem realizados, maior será a proximidade com o desenvolvimento de crianças ouvintes.9,11

Sendo assim, este estudo tem por objetivos descrever o perfil linguístico oral e escrito e as habilidades auditivas das crianças usuárias de aparelho de amplificação sonora individual (AASI), adaptadas no período de 2008 a 2010 em um serviço de saúde auditiva, caracterizar o processo de intervenção fonoaudiológica e analisar sua relação com o grau da perda auditiva das crianças.

Método

Trata-se de estudo observacional analítico transversal realizado em um serviço de atenção à saúde auditiva (SASA) de alta complexidade, de Belo Horizonte, Minas Gerais, no período de setembro de 2011 a maio 2012.

Após levantamento efetuado na base de dados do próprio serviço, foram identificadas 206 crianças adaptadas nos anos de 2008 a 2010, que tiveram o diagnóstico auditivo confirmado por meio do exame de audiometria tonal e vocal.

Considerando os critérios de exclusão (audição normal ou indicação de cirurgia otorrinolaringológica, desistir do tratamento, ser transferido para outro SASA, presença de síndromes e alterações neurológicas associadas e óbito), a população elegível foi composta por 131 crianças. Destas, sete não puderam ser localizadas e 14 não compareceram para avaliação. Sendo assim, a população foi composta por 110 indivíduos.

Todas as 110 crianças foram submetidas à avaliação de linguagem e de habilidades auditivas de forma individual, e durante a avaliação fizeram o uso do aparelho de amplificação sonora individual (AASI). A avaliação foi realizada em sessão única com duração média de uma hora. Os responsáveis responderam a um questionário estruturado com o objetivo de caracterizar a amostra, com os seguintes eixos temáticos: os indicadores de risco para perda auditiva ao nascimento, dados sobre diagnóstico auditivo, intervenção e acompanhamento fonoaudiológico, vida escolar e indicadores socioeconômicos.

Para avaliação de linguagem oral foi utilizado o protocolo Teste de Linguagem Infantil ABFW,12 elaborado para crianças de três a 12 anos. Este é composto por avaliações nas áreas da fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Nesta pesquisa foram realizadas as tarefas de fonologia e vocabulário. Apenas as crianças oralizadas (n = 80) conseguiram realizar estas provas.

Para a prova de vocabulário, o registro das respostas das crianças foi realizado imediatamente após a nomeção, em folhas individuais, e, para análise, seguiu-se o critério estabelecido pela autora do teste.13,14

Em relação à fonologia, utilizou-se neste estudo a prova de nomeação espontânea. O registro das respostas foi realizado por meio de uma câmera digital Exilim, da marca Cassio®, no modo filmagem. Após escuta do arquivo, realizou-se a transcrição fonética e a análise das respostas. A gravação de uma criança com perda auditiva de grau moderadamente severo a severo não pôde ser recuperada. Para a análise seguiu-se o critério estabelecido pela autora do teste.15

Para avaliação da linguagem escrita utilizou-se o Teste de Desempenho Escolar (TDE),16 desenvolvido para avaliação de escolares de primeira a sexta série do ensino fundamental e composto por três subtestes: escrita, aritmética e leitura. A classificação final do TDE e de cada subteste foi realizada conforme descrito pela autora do instrumento.17 Para análise do resultado do teste TDE, nas crianças da primeira série, as categorias médio-inferior e médio-superior foram agrupadas na categoria “médio”.

Para avaliação das habilidades auditivas, foram utilizados dois protocolos: teste de percepção de fala – GASP18 e teste de figura para discriminação fFonêmica (TFDF).19 O teste de percepção de fala – GASP é composto por cinco provas que avaliam as habilidades de detecção dos sons de Ling, discriminação de vogais, discriminação de extensão, reconhecimento de palavras e compreensão de sentenças com o uso do aparelho de amplificação sonora individual. A análise do teste foi realizada conforme sugerido pela literatura.18 Nesta pesquisa, realizou-se também o estudo do resultado global do teste, por meio do cálculo da média de todas as provas, com a finalidade de analisar o resultado geral e comparar os indivíduos.

O teste de figura para discriminação fonêmica (TFDF) avalia a habilidade de discriminação fonêmica por meio de pares mínimos. O escore final foi classificado como adequado ou alterado, de acordo com a idade, conforme os critérios propostos pela literatura.19 Considerou-se o escore zero para aquelas crianças que não conseguiram realizar o teste.

A análise do tipo de comunicação da criança foi dividida em três categorias: oral, oral associado a Libras – Língua Brasileira de Sinais (a criança se expressa de forma oral, mas utiliza Libras quando não consegue se comunicar de forma efetiva) e não oralizado (uso exclusivo de Libras e/ou gestos funcionais), conforme resposta do responsável no questionário dirigido.

O diagnóstico auditivo foi realizado segundo critérios estabelecidos pela literatura quanto ao grau e tipo.20 Para análise da variável grau da perda auditiva, foi considerado o diagnóstico da melhor orelha e as crianças foram distribuídas em três grupos: grau leve a moderado; grau moderadamente severo a severo; e grau profundo bilateral. Nos três grupos, observaram-se crianças com os tipos de perda auditiva neurossensorial, misto e condutivo.

Os dados foram armazenados em formato eletrônico, com digitação dupla e verificação da consistência do banco de dados. Para processamento e análise dos dados foi utilizado o pacote estatístico Epi Info 7.1.0.6.

Foi realizada análise descritiva da distribuição de frequência das variáveis categóricas e análise das medidas de tendência central e de dispersão para as variáveis contínuas. Para verificar a associação entre o grau da perda auditiva e os aspectos da intervenção fonoaudiológica e o desempenho nos testes auditivos, foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis. O nível de significância adotado foi de 5%.

Para verificar a associação entre o grau da perda auditiva e o tipo de comunicação utilizada, foi realizado o teste Quiquadrado de tendência linear, comparando as crianças com perda leve/moderada com as demais com perdas auditivas mais importantes.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais sob o Parecer nº ETIC 0316.0.203.000-10. Todos os responsáveis pelas crianças que participaram do estudo assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Resultados

As principais características das 110 crianças avaliadas neste estudo estão descritas na tabela 1.

Em relação ao grau da perda auditiva, observou-se um maior número de crianças no grupo de grau moderadamente severo/severo (43,7%). Quanto à configuração da curva audiométrica, tanto na OD quanto na OE, a curva descendente foi a mais frequente (56,3% na OD e 53,6% na OE).

Por ocasião da coleta de dados para esta pesquisa, a mediana de tempo de adaptação do AASI das crianças era 2,68 anos (variando de 0,9 a 4,5 anos).

Na tabela 2 estão descritos aspectos da intervenção fonoaudiológica.

Houve diferença com significância estatística entre as medianas de idade de diagnóstico, idade de adaptação de AASI, tempo entre diagnóstico e adaptação do AASI e início da fonoterapia segundo o grau da perda auditiva.

Não foi observada associação entre acompanhamento em fonoterapia, o número de consultas, a continuidade do processo e o tipo de instituição frequentada para fonoterapia segundo o grau da perda auditiva.

A distribuição das crianças segundo o grau de perda auditiva e o tipo de comunicação utilizada e os resultados dos testes de linguagem oral e escrita está descrita na tabela 3.

Em relação à linguagem, 65% das crianças avaliadas apresentaram alteração de vocabulário e 88,8% apresentaram presença de alguma alteração na área da fonologia.

A tabela 4 apresenta o resultado da associação entre o grau da perda auditiva e o tipo de comunicação pelas crianças com deficiência auditiva.

Houve associação entre o grau da perda auditiva e o tipo de comunicação utilizada pela criança. O risco de uma criança do grupo de perda auditiva de grau moderadamente severo/severo não utilizar a linguagem oral para se comunicar é 6,2 vezes maior do que uma criança do grupo de perda auditiva de grau leve/moderado; e o risco de uma criança do grupo de perda auditiva de grau profundo bilateral não utilizar a linguagem oral para se comunicar é 83,1 vezes maior do que uma criança do grupo leve/moderado.

A tabela 5 descreve o desempenho das crianças nos testes auditivos GASP e TFDF, segundo o grau da perda auditiva.

Discussão

A média de idade das crianças avaliadas neste estudo foi de oito anos e seis meses, e a maioria delas frequentava escola regular, tendo ingressado na mesma com idade inferior a seis anos de idade. Nessa idade, espera-se que a criança esteja inserida na escola e tenha adquirido um vocabulário extenso, que haja domínio das regras da sintaxe e todos os sons da fala tenham sido adquiridos.7,13,21 Contudo, a maior parte das crianças não alcançou os resultados esperados nos teste de vocabulário e fonologia, independentemente do grau de perda auditiva.

Nas crianças avaliadas, observou-se um predomínio de perda auditiva de grau moderadamente severo/severo com configuração da curva audiométrica descendente. Este tipo de configuração da curva pode trazer grandes prejuízos na linguagem compreensiva e expressiva; principalmente na discriminação e reconhecimento de sons de fala, em especial os fricativos.17,22

Quanto ao tipo da perda auditiva, o neurossensorial foi o mais frequentemente observado neste estudo. No entanto, ressalta-se o fato de que, em alguns casos, em uma mesma criança foram encontrados tipos diferentes de perda auditiva para cada orelha. No tipo neurossensorial, a perda auditiva na maioria das vezes é irreversível, e o comprometimento maior se dá no nível da compreensão auditiva.23 No tipo condutivo e misto, a flutuação da audição pode trazer prejuízos na inteligibilidade da fala e, consequentemente, a criança pode desenvolver alterações fonológicas e de processamento auditivo, assim como apresentar dificuldades escolares.22

No grupo de crianças com perda auditiva de grau profundo bilateral, a idade de diagnóstico auditivo e a idade de adaptação do AASI foram inferiores do que nos outros grupos avaliados. Isto pode ser justificado pelo fato de perdas auditivas de grau profundo serem mais facilmente percebidas pela família e por profissionais de saúde envolvidos com a criança.24 O encaminhamento precoce favorece o processo de diagnóstico e a adaptação do dispositivo de amplificação sonora em tempo hábil e de forma eficiente. Contudo, nos casos de perdas auditivas mais discretas, a dificuldade da criança pode não ser percebida pelos profissionais de saúde e pela família, sendo observada muitas vezes pelos professores com o surgimento das dificuldades escolares.6,23

A média de tempo entre o diagnóstico e a adaptação do AASI, em geral, foi maior no grupo de crianças com perda auditiva de grau profundo bilateral, apesar da idade de diagnóstico ter sido inferior para este grupo. Para o diagnóstico auditivo de crianças com idade inferior a três anos, é necessária a realização de exames e procedimentos de maior complexidade, como, por exemplo, o potencial auditivo de tronco encefálico e a emissão otoacústica. O aumento da duração da etapa de diagnóstico pode estar relacionado ao maior número de exames audiológicos necessários para a conclusão do diagnóstico nessas crianças.24

Neste estudo, independentemente do grau da perda auditiva, a idade de diagnóstico e de adaptação ocorreram tardiamente, divergindo do proposto na literatura, ou seja, que o diagnóstico auditivo seja realizado antes do terceiro mês de vida e a intervenção fonoaudiológica seja iniciada até os seis meses de idade.1,22,25

Em algumas pesquisas realizadas no Brasil, também houve dificuldade em atingir o padrão recomendado. Em um estudo que avaliou a situação do diagnóstico e atendimento de pacientes com deficiência auditiva, com idade entre zero a 14 anos, na cidade de Campinas, a média de idade de diagnóstico encontrada foi de 4,3 anos e a média de idade da adaptação do AASI foi de 7,5 anos.24 Já no estudo que teve como objetivo a caracterização da idade de diagnóstico e de intervenção de crianças atendidas no Hospital das Clínicas de São Paulo, as médias de idade nestas etapas foram de 5,4 anos e 6,8 anos, respectivamente.6

Estes aspectos da intervenção fonoaudiológica tornam-se relevantes devido ao fato da idade de diagnóstico e de adaptação serem fatores determinantes para o prognóstico do desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem das crianças com deficiência auditiva.6 O Programa de Triagem Auditiva Neonatal (TAN) foi instituído no estado de Minas Gerais por meio da Resolução SES nº 1.321,26 e tornou-se obrigatório em todo território nacional por meio da Lei Federal nº 12.303 27 para detecção precoce da perda auditiva, devido ao impacto que esta pode causar no desenvolvimento da criança. É importante ressaltar que as crianças avaliadas neste estudo não foram submetidas ao TAN, o que pode justificar os resultados relacionados à intervenção fonoaudiológica.

Independentemente do grau da perda auditiva, apenas o uso efetivo do dispositivo eletrônico, na maioria das vezes, não é suficiente para minimizar os prejuízos nas habilidades auditivas e de linguagem, sendo o processo da fonoterapia de fundamental importância neste processo.21,28 De acordo com a literatura, o processo terapêutico deve ser iniciado o mais precocemente possível e, de forma contínua, com envolvimento familiar da criança.3

Os resultados do presente estudo revelaram que grande parte das crianças em uso de AASI ainda encontrava-se sem acompanhamento fonoaudiológico ou estava realizando um número insuficiente de sessões. No estado de Minas Gerais, a reabilitação fonoaudiológica das crianças com deficiência auditiva deve ser garantida pelo menos duas vezes por semana pelo SASA ou pelos municípios por meio da fonoaudióloga descentralizada.4,5,29 A dificuldade de acesso às sessões de fonoterapia também foi citada em outros estudos, como no município de Salvador, que avaliou a oferta de atendimento fonoaudiológico pelo SUS,30 e outro que investigou as características do diagnóstico e da intervenção fonoaudiológica de crianças com deficiência auditiva do município de Blumenau.31

O grande número de crianças com alteração no desenvolvimento de linguagem oral e escrita e das habilidades auditivas, independentemente do grau de perda auditiva, revela as consequências da intervenção fonoaudiológica para estes indivíduos.

O desenvolvimento das habilidades auditivas de percepção de fala no grupo de crianças com perda auditiva de grau leve/moderado mostrou-se dentro do esperado. No entanto, um baixo desempenho foi observado na tarefa de discriminação fonêmica e no desenvolvimento lexical e fonológico. É esperado que crianças com este tipo e grau de perda auditiva, em uso efetivo do AASI e em acompanhamento fonoaudiológico periódico, tenham um desenvolvimento próximo ao de crianças ouvintes.17

A perda auditiva de grau moderadamente severo/severo pode causar um impacto maior no desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem das crianças com deficiência auditiva em relação à perda auditiva leve/moderada. Contudo, o uso do AASI e a estimulação das habilidades auditivas possibilitariam a estas crianças um desenvolvimento satisfatório da audição e da linguagem oral. Neste estudo, um grande número de crianças apresentou dificuldade importante na habilidade de compreensão auditiva. Em consequência, muitas delas não são oralizadas, e entre aquelas que utilizam a fala para se comunicar, a maior parte apresentou grande atraso no desenvolvimento lexical e fonológico.

Para o grupo de crianças com perda auditiva de grau profundo bilateral, não foi observada resposta para as habilidades de detecção, discriminação, percepção da extensão, reconhecimento e compreensão auditiva. Poucas crianças deste grupo utilizavam a fala para se comunicar, e aquelas que eram oralizadas apresentaram um atraso importante no desenvolvimento lexical e fonológico. A audição residual encontrada nas crianças com deficiência auditiva de grau profundo bilateral é pequena, o que limita a área dinâmica da audição e, consequentemente, o ganho auditivo com o AASI, justificando a grande dificuldade na percepção dos sons ambientais e de fala para estas crianças.32,33

Nestes casos, é indicado o uso do implante coclear, o que tem proporcionado grandes conquistas no desenvolvimento de linguagem de crianças com deficiência auditiva de grau profundo, uma vez que fornece acesso a informações de fala, em especial nas frequências altas, o que em geral não é observado com o uso do AASI.

Além disso, crianças implantadas apresentam melhor percepção de fala, aumento do número de vogais e consoantes produzidas e melhor inteligibilidade de fala do que aquelas em uso de AASI.28,32,33

Contudo, para que este tipo de intervenção seja realizada com resultados satisfatórios no desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem, o diagnóstico auditivo e a intervenção fonoaudiológica devem ser realizados de forma precoce.28,34

Já no desempenho da linguagem escrita, em todos os grupos avaliados, a maior parte das crianças apresentou um resultado inferior no teste de desempenho acadêmico. Este resultado pode estar associado ao baixo desempenho nos testes de linguagem oral e auditivo. É comum observar dificuldade de aprendizagem em crianças com deficiência auditiva, uma vez que o comprometimento da linguagem oral e das habilidades auditivas pode trazer como consequência alterações no processo de desenvolvimento da leitura, escrita e raciocínio lógico-matemático. Além disso, o domínio da capacidade de simbolização, generalização, manipulação dos sons e consciência fonológica também são fundamentais na aprendizagem e são pouco desenvolvidas nestas crianças.35

Os prejuízos auditivos e de linguagem observados nestes dois grupos poderiam ter sido minimizados caso estas crianças tivessem sido avaliadas pela TAN e a intervenção fonoaudiológica tivesse sido iniciada de forma precoce. O período crítico de maturação do sistema auditivo central ocorre principalmente nos cinco primeiros anos de vida.34 No entando, a idade de diagnóstico, de adaptação de AASI e de início da fonoterapia encontrada para estes grupos foi acima dos cinco anos de idade. Além disso, o fator socioeconômico também pode exercer influência no desenvolvimento da criança.3,36

Neste estudo, grande parte das crianças era proveniente de famílias com renda per capita inferior a um salário mínimo e o nível de escolaridade dos pais era baixo.

A dificuldade nas habilidades auditivas das crianças avaliadas, independentemente do grau da perda auditiva, também pôde ser constatada na discrepância entre os resultados dos dois testes auditivos realizados. Em todos os grupos, foram observados melhores resultados no teste GASP em relação ao TFDF. Este fato pode ser justificado pelas diferentes habilidades auditivas exigidas em cada teste. Para realização do teste GASP estão envolvidas as habilidades de detecção, discriminação de vogais, percepção da extensão, reconhecimento auditivo em conjunto fechado e compreensão de frases do cotidiano. Já no TFDF, a habilidade auditiva envolvida é a discriminação fonêmica em pares mínimos. Para que a criança tenha um bom desempenho neste teste, outras habilidades auditivas também deverão ser dominadas, como, por exemplo, o processamento temporal.19 Além disso, os componentes semânticos, fonológicos, consciência fonológica e de memória envolvidos aumentam o grau de dificuldade do teste para as crianças com deficiência auditiva.19

As dificuldades no desenvolvimento auditivo e de linguagem oral e escrita observadas nos sujeitos do presente estudo reforçam a importância da atenção e do cuidado com as crianças com diagnóstico de deficiência auditiva. Após a implementação da Política Nacional de Saúde Auditiva, em 2004, pelo Ministério da Saúde,4,5 estes indivíduos passaram a ter acesso a um atendimento integral, desde o diagnóstico auditivo, fornecimento dos dispositivos eletrônicos de amplificação sonora (AASI e implante coclear), como também o acompanhamento fonoaudiológico.

Este programa é inovador e trouxe grandes benefícios para o tratamento dos indivíduos com deficiência auditiva no país. Contudo, para que todos os objetivos propostos sejam alcançados, é importante que haja uma reestruturação na rede de saúde auditiva no Brasil. As políticas públicas devem visar à integração da rede por meio de ações na atenção básica, como a orientação dos profissionais de saúde quanto à suspeita e diagnóstico da deficiência auditiva em crianças, da estruturação do programa de triagem auditiva neonatal e de investimentos na qualificação dos serviços de atenção à saúde auditiva e dos centros de reabilitação. Devem ser garantidos o acesso ágil e eficiente das crianças ao programa de saúde auditiva e a disponibilidade de profissionais experientes e capacitados para exercer tal função.

Destaca-se também a importância da participação da equipe multidisciplinar envolvida na atenção ao indivíduo com deficiência auditiva que integra o SASA, tais como os assistentes sociais e os psicólogos, tanto para intervenção quanto para orientação familiar. O envolvimento da família no processo de reabilitação da criança com deficiência auditiva é imprescindível para os bons resultados.3

Atualmente, a avaliação da qualidade dos serviços de saúde auditiva está direcionada para a infraestrutura (instalações físicas, número de profissionais, equipamentos) e para produtividade mensal de procedimentos, o que não garante a avaliação da qualidade dos serviços prestados. A avaliação periódica e padronizada do desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem das crianças em acompanhamento nos serviços de stenção à saúde auditiva deve ser realizada de forma sistemática, com o objetivo de subsidiar o planejamento terapêutico como um recurso de avaliação da qualidade da intervenção.

Sendo assim, estudos longitudinais são necessários para monitoramento da qualidade dos serviços e do avanço das propostas do programa nacional de saúde auditiva. A influência de alguns fatores, como idade, locais de reabilitação, ambiente familiar e socioeconômico e comportamento social da criança, também deve ser investigada para uma melhor adequação das ações às diferentes realidades loco -regionais.

Durante a realização do estudo houve dificuldade na seleção de instrumentos padronizados e validados no país desenvolvidos para a criança com deficiência auditiva acima de seis anos de idade, principalmente para avaliação de linguagem oral (vocabulário e fonologia) e aprendizagem. Na maioria das vezes, nas avaliações disponíveis os valores de normalidade eram baseados no desempenho da criança ouvinte, e como o processo de desenvolvimento auditivo e de linguagem das crianças com perda auditiva não seguem os mesmo padrões, houve dificuldade na comparação dos resultados de outros estudos.

Em relação ao desenvolvimento da fonologia, em crianças com deficiência auditiva, muitas vezes a alteração observada relacionou-se ao fato da dificuldade na percepção e discriminação dos sons de fala causados pela redução da acuidade auditiva. Contudo, optou-se por avaliar este aspecto do desenvolvimento de linguagem com o objetivo de investigar as trocas e processos fonológicos presentes no desenvolvimento das crianças avaliadas.

É importante ressaltar que o uso efetivo do AASI, o tempo de adaptação ao mesmo e o tempo de terapia fonoaudiológica também podem influenciar o desenvolvimento auditivo e de linguagem oral e escrita. Neste estudo, a maior parte das crianças avaliadas fazia uso efetivo do AASI. Contudo, observou-se uma grande variabilidade no tempo de adaptação do AASI e de terapia fonoaudiológica entre os indivíduos.

Estas variáveis podem ter influenciado no desenvolvimento das crianças avaliadas, assim como o desempenho delas nos testes.

Conclusão

Grande parte das crianças com deficiência auditiva apresentou alteração no desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem oral e escrita. Este resultado se relaciona com as características da intervenção fonoaudiológica, uma vez que no diagnóstico auditivo, a adaptação do AASI e o acompanhamento fonoaudiológico ocorreram de forma tardia, independentemente do grau da perda auditiva.

A avaliação das habilidades de linguagem oral e escrita e auditiva da criança com deficiência auditiva deve ser realizada periodicamente, de forma que o processo de intervenção fonoaudiológica possa ser reavaliado e para que o planejamento terapêutico seja elaborado de acordo com a evolução de cada indivíduo.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.


Recebido em 10 de novembro de 2013;

aceito em 12 de maio de 2014

DOI se refere ao artigo: http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2014.05.034

Como citar este artigo:Penna LM, Lemos SM, Alves CR. Auditory and language skills of children using hearing aids. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:148-57.

* Autor para correspondência.

E-mail:leticiapenna@hotmail.com (L.M. Penna).

Bibliografia
[1]
Estudo da efetividade de um programa de triagem auditiva neonatal universal. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15:353-61.
[2]
Evaluación auditiva neonatal universal: revisión de 10.000 pacientes estudiados. Rev Otorrinolaringol Cir Cabeza Cuello. 2009;69:93-102.
[3]
Implante coclear em crianças pós linguais: resultados funcionais após 10 anos da cirurgia. Braz J Otorhinolaryngol. 2012;78:103-10.
[4]
Ministério da Saúde Portaria nº 587, de 7 de outubro de 2004 [acessado 10 Nov 2013]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/sas/mac/area.cfm?id area=824.
[5]
Ministério da Saúde Portaria nº 589, de 08 de outubro de 2004 [acessado 10 Nov 2013]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/sas/mac/area.cfm?id area=824.
[6]
Assessment and management of central auditory processing disorders in the educational setting. 2ª ed. San Diego: Singular; 2002.
[7]
Linguagem oral de crianças com cinco anos de uso do implante co-clear. Pró-Fono. 2007;19:167-76.
[8]
Assessment of expressive vocabulary outcomes in hearing-impaired children with hearing aids: do bilaterally hearing-impaired children catch up? J Laryngol Otol. 2006;120:619-26.
[9]
Verificação do desempenho de crianças deficientes auditivas oralizadas em teste de vocabulário. Pró-Fono. 2006;18:189-96.
[10]
Análise comparativa da linguagem oral de crianças ouvintes e surdas usuárias de implante coclear. Rev CEFAC. 2009;11:662-72.
[11]
ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de Fonologia, Vocabulário, Fluência e Pragmática. São Paulo: Pró-Fono; 2000. p. 5-40.
[12]
Prova de vocabulário (parte B). Em: Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF, editores. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de Fonologia, Vocabulário, Fluência e Pragmática. São Paulo: Pró-Fono; 2000. p. 5-40.
[13]
Prova de verificação do vocabulário: aspectos da efetividade como instrumento diagnóstico [Livre Docência]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2002.
[14]
Fonologia. Em: Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF, editores. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. São Paulo: Pró-Fono; 2000. p. 5-40.
[15]
TDE – teste de desempenho escolar: manual para aplicação e interpretação. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994.
[16]
Em: Marchesan IQ, Zorzi JL, Gomes ICD, editores. Tópicos em Fonoaudiologia. São Paulo: Lovise; 1996. p. 411-33.
[17]
O diagnóstico da perda auditiva na infância. J Pediatr. 2007;29:43-9.
[18]
Teste de figura para discriminação fonêmica [dissertação]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2007.
[19]
Audiometric interpretation: a manual of basic audiometry. Baltimore: University Park Press; 1978.
[20]
Tendências da aquisição lexical em crianças em desenvolvimento normal e crianças com Alterações específicas no desenvolvimento da linguagem. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15:297-304.
[21]
Próteses auditivas: fundamentos teóricos e aplicações clínicas. 2ª ed. São Paulo: Lovise; 2003.
[22]
Comitê multiprofissional em saúde auditiva: COMUSA. Braz J Otorhinolaryngol. 2010;76:121-8.
[23]
Year 2007 position statement: principles and guidelines for early hearing detection and intervention programs. Pediatrics. 2007;120:898-921.
[24]
Da suspeita à intervenção em surdez: caracterização deste processo na região de Campinas/SP. J Soc Bras Fonoaudiol. 2011;23:32-7.
[25]
Idade no diagnóstico e no início da intervenção de crianças deficientes auditivas em um serviço público de saúde auditiva brasileiro. Arq Int Otorrinolaringol. 2012;16:44-9.
[26]
Secretaria de Estado de Saúde. Resolução 1321 de 18 de outubro de 2007 [acessado 10 Nov 2013]. Disponível em: http://www.saude.mg.gov.br/atos normativos/legislacaosanitaria/estabelecimentos-de-saude/saude-auditiva/Resolucao%20SES-MG%20no%201321,%20de%2018-10-2007.pdf.
[27]
Ministério da Saúde. Lei 12.303 de 02 de agosto de 2010 [acessado 10 Nov 2013]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12303.htm.
[28]
Percepção da fala em deficientes auditivos pré-linguais usuários de implante coclear. Pró-Fono. 2010;22:275-80.
[29]
Avaliação do benefício do uso de aparelhos de amplificação sonora individual em crianças. Arq Int Otorrinolaringol. 2012;16:170-8.
[30]
Secretaria de Estado de Saúde. Resolução 1669 de 19 de novembro de 2008 [acessado 10 Nov 2013]. Disponível em: http://www.saude.mg.gov.br/servico/servicos-para-oprofissional-desaude/RESOLUCaO%20SES%20No1669%20DE%20 19%20DE%20NOVEMBRO%20DE%202008.pdf.
[31]
A ótica dos usuários sobre a oferta do atendimento fonoaudiológico no Sistema Único de Saúde (SUS) em Salvador. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14:1553-64.
[32]
Estudo do diagnóstico, etiologia e (re)habilitação do deficiente auditivo em um centro da Região Sul. Ciênc Cultura. 2008;39:63-84.
[33]
Perfil audiológico e habilidades auditivas em crianças e adolescentes com perda auditiva. Estudos Linguísticos. 2010;39:10-20.
[34]
Estudo longitudinal da compreensão verbal de crianças usuárias de implante co-clear. Rev CEFAC. 2010;12:210-5.
[35]
Implante coclear: audição e linguagem em crianças deficientes auditivas pré-linguais. Pró-Fono. 2007;19:295-304.
[36]
Crianças usuárias de implante coclear: desempenho acadêmico, expectativas dos pais e professors [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2008.
Idiomas
Brazilian Journal of Otorhinolaryngology
Opções de artigo
Ferramentas
en pt
Announcement Nota importante
Articles submitted as of May 1, 2022, which are accepted for publication will be subject to a fee (Article Publishing Charge, APC) payment by the author or research funder to cover the costs associated with publication. By submitting the manuscript to this journal, the authors agree to these terms. All manuscripts must be submitted in English.. Os artigos submetidos a partir de 1º de maio de 2022, que forem aceitos para publicação estarão sujeitos a uma taxa (Article Publishing Charge, APC) a ser paga pelo autor para cobrir os custos associados à publicação. Ao submeterem o manuscrito a esta revista, os autores concordam com esses termos. Todos os manuscritos devem ser submetidos em inglês.